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Endocrinologia18 julho 2025

Impacto do transplante de ilhotas em complicações e mortalidade no DM1

Confira o que abordou um estudo recentemente publicado no Diabetes Care a respeito deste tratamento.

O diabetes tipo 1 (DM1), apesar dos avanços terapêuticos nas últimas décadas — como os sistemas híbridos de infusão e sensores de glicose em tempo real — ainda representa um desafio clínico considerável, sobretudo para pacientes com hipoglicemias graves, baixa percepção dos sintomas ou descontrole glicêmico persistente. Nesses indivíduos, a variabilidade glicêmica e a exposição prolongada à hiperglicemia contribuem para a progressão de complicações microvasculares, eventos macrovasculares e aumento da mortalidade. 

O transplante de ilhotas pancreáticas (TI), uma abordagem menos invasiva que o transplante pancreático total, tem sido explorado como opção para restaurar parcialmente a secreção endógena de insulina, estabilizar a glicemia e prevenir hipoglicemias graves.  

Apesar de estudos clínicos demonstrarem benefícios em parâmetros metabólicos, faltavam até recentemente dados comparativos sobre o impacto do TI em desfechos clínicos mais relevantes, como morte, eventos cardiovasculares e progressão da doença renal. Para preencher essa lacuna, um grupo francês conduziu um estudo de coorte multicêntrico e retrospectivo, analisando o impacto do transplante de ilhotas sobre a mortalidade e as complicações do DM1 em longo prazo. Pela relevância do tema, o artigo foi publicado recentemente na Diabetes Care, jornal da American Diabetes Association (ADA) e trazemos para cobertura e discussão no portal. 

Métodos do estudo

O estudo foi uma coorte retrospectiva, que incluiu 106 pacientes com DM1 submetidos a transplante de ilhotas entre 1999 e 2016 na França, sendo 61 com transplante de ilhotas isoladas (ITA) e 45 com transplante de ilhotas após transplante renal prévio (IAK). O grupo controle foi obtido a partir do banco nacional francês de dados em saúde (SNDS), com pareamento por escore de propensão. Para cada paciente do grupo ITA, foram selecionados 10 controles com DM1 e sem transplante renal; no grupo IAK, o pareamento foi 1:1 com pacientes com DM1 e transplante renal, mas sem TI. 

A mediana de duração do DM1 foi de 31,6 anos no grupo ITA e 32,6 anos no grupo IAK, com seguimento superior a 10 anos. O desfecho primário foi composto por morte, diálise, amputação, AVC não fatal, infarto do miocárdio não fatal e AIT. O desfecho secundário foi a incidência de câncer (mama, cólon, pulmão, próstata e outros). A análise estatística baseou-se em modelos de riscos proporcionais de Cox, com curvas de Kaplan-Meier para estimativa de sobrevida. 

Antes do pareamento, os grupos transplantados apresentavam maior complexidade clínica. O grupo ITA era composto por pacientes com DM1 instável, hipoglicemias graves recorrentes e mau controle metabólico, enquanto o grupo IAK reunia pacientes com função renal preservada após transplante renal e critérios estritos de inclusão, como TFG >50 mL/min. 

Resultados

Os resultados do estudo foram significativos. No grupo ITA, houve redução de 61% no risco do desfecho composto em comparação aos controles (HR 0,39; IC95% 0,21–0,71; p=0,002), resultado impulsionado principalmente por uma redução expressiva na mortalidade (HR 0,22; IC95% 0,09–0,54; p<0,001). Não houve diferença significativa nos eventos macrovasculares ou em amputações, nem aumento na incidência de câncer (HR 1,00; IC95% 0,54–1,87). 

No grupo IAK, o transplante de ilhotas também foi associado a uma redução do risco do desfecho composto (HR 0,52; IC95% 0,30–0,88; p=0,014), impulsionada principalmente pela menor necessidade de retorno à diálise (HR 0,19; IC95% 0,07–0,50; p<0,001). Observou-se, contudo, um aumento no risco de infarto do miocárdio (HR 4,24; IC95% 1,18–15,2; p=0,016), possivelmente relacionado ao pareamento desfavorável no escore de propensão para esse grupo, com maior prevalência prévia de infarto e idade mais avançada entre os transplantados. 

Apesar do uso contínuo de imunossupressores, não houve aumento no risco de câncer em nenhum dos grupos, mesmo após mais de uma década de seguimento. Essa ausência de efeito oncogênico relevante sugere que os benefícios do melhor controle glicêmico podem compensar o risco potencial da imunossupressão crônica. 

Importante ressaltar que os benefícios foram observados mesmo sem independência insulínica sustentada. Menos de 5% dos pacientes nos estudos GRAGIL mantiveram-se livres de insulina após 10 anos, embora mais de 50% mantivessem enxertos funcionantes, suficientes para reduzir variabilidade glicêmica e prevenir hipoglicemias. 

Conclusão e mensagem prática

Este estudo, apesar do desenho retrospectivo, fornece evidências de que o transplante de ilhotas pancreáticas pode modificar o curso do diabetes tipo 1 em subgrupos selecionados. Em pacientes com controle glicêmico instável e histórico de hipoglicemias graves, o TI reduziu significativamente o risco de morte e complicações maiores. Nos indivíduos com transplante renal prévio, o TI preservou a função do enxerto renal e reduziu a necessidade de diálise, sem aumentar o risco de neoplasias. 

Para a prática médica no Brasil, os achados são altamente relevantes. Embora o transplante de ilhotas ainda seja restrito a centros de pesquisa, os dados fornecem base para considerar sua incorporação futura como alternativa terapêutica em pacientes refratários às estratégias tecnológicas convencionais, especialmente aqueles com hipoglicemias recorrentes e alto risco de complicações vasculares. Em centros com experiência em transplante renal, o modelo IAK pode oferecer uma via segura de ampliação do TI, aproveitando o regime imunossupressor já em uso. 

Ainda que observacional, o estudo apresenta grande validade metodológica, com dados nacionais padronizados, pareamento rigoroso e mais de uma década de seguimento. Os dados não apenas sustentam o benefício do TI como estratégia de redução de eventos graves em DM1, mas também reforçam seu valor como possível terapia modificadora da história natural da doença. Fica agora a missão da comprovação em estudos randomizados e a tarefa de se pensar em custo-efetividade e como ampliar o acesso a essa terapia. 

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Referências bibliográficas

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