Desde o primeiro relato de infecção por covid-19, extensa literatura foi publicada tanto sobre a infecção aguda, causada pelo SARS-CoV-2, quanto sobre a forma crônica, chamada de covid longa. Apesar de afetar predominantemente o sistema respiratório, a covid-19 também pode apresentar sintomas não-respiratórios, levando a anormalidades cardíacas, hepáticas e endócrinas. Dentre as anormalidades endócrinas, a doença tireoidiana tem sido frequentemente descrita.
A função tireoidiana é controlada pelo eixo hipotálamo-hipófise-tireoide. Parece haver uma interação bidirecional entre o eixo tireoidiano e o sistema imune. Por um lado, funções imunes como mobilidade leucocitária, produção de anticorpos e liberação de citocinas são reguladas pelos hormônios tireoidianos. Por outro lado, infecções e a ativação de vias inflamatórias podem afetar a produção de T3.
A hiperativação da resposta imune por agentes infecciosos como o SARS-CoV-2 podem desempenhar um papel na doença autoimune de tireoide. Não podemos descartar também lesão direta do tecido tireoidiano pela ação do vírus, uma vez que o vírus foi detectado em tecido tireoidiano e que este é rico em receptores específicos para ele.
A covid longa pode afetar pelo menos 10% dos indivíduos após a infecção aguda. Sintomas como fadiga, “brain fog”, dor torácica, transtornos de humor, tosse, falta de ar, cefaleia e dores musculares foram descritos. A partir destes, foi levantada a hipótese de envolvimento tireoidiano. Além disso, cogita-se também o aumento na incidência de doença autoimune de tireoide devido à disfunção imunológica causada pelo vírus.
Deste modo, faz-se necessária uma revisão ampla da literatura para sintetizar e atualizar o conhecimento sobre disfunção tireoidiana e COVID. Com este objetivo, um grupo de pesquisadores do Reino Unido realizou uma revisão sistemática da literatura, publicada em 2025 no periódico Frontiers in Endocrinology (1).
Metodologia
Foi realizada revisão sistemática da literatura englobando diversos aspectos da patologia tireoidiana no contexto da covid-19. A população incluída consistiu em pacientes com covid-19 sem histórico prévio de doença tireoidiana. A pergunta principal foi se a presença de anormalidades tireoidianas afeta o desfecho e recuperação da covid-19. Foram incluídos na revisão apenas estudos nos quais os casos de covid-19 foram confirmados por testes moleculares.
Resultados
Foram identificados 53 estudos, dos quais a maioria foi de relatos de casos ou séries de casos. Estes descreveram um total de 43 pacientes. A tireoidite subaguda foi descrita em 64% dos pacientes, seguida por doença de Graves (21%), tireoidite de Hashimoto (9%) e tireoidite silenciosa (5%). Os pacientes tinham idades entre 18 e 81 anos, eram provenientes diversos países e 66% eram mulheres.
Foram também identificados 12 estudos retrospectivos. Três deles focavam-se especificamente em tireoidite subaguda, 5 em disfunção tireoidiana em geral e 4 em síndrome do eutireoideo doente (SED, também conhecida com síndrome de doença não-tireoidiana). Os resultados mostraram que a tireoidite subaguda apresenta maior incidência em pacientes com covid-19 quando comparados à população geral e ocorre em média de 10 a 20 dias após o diagnóstico da infecção.
Cinco estudos retrospectivos abordaram doença tireoidiana em geral, demonstrando que a alteração mais frequente foi SED, seguida por tireotoxicose subclínica e por hipotireoidismo subclínico. É importante notar que a ocorrência de SED foi associada a um aumento de mortalidade em um dos estudos. Foram ainda identificados 4 estudos prospectivos, que confirmam os achados de maior incidência de SED e doença autoimune de tireoide.
Conclusões
A relação entre covid-19 e função tireoidiana ainda não é bem compreendida. Estudos sugerem tanto lesão direta da glândula pelo vírus como mecanismos indiretos através da resposta inflamatória generalizada. A tempestade de citocinas foi abordada em diversas publicações. Este mecanismo é associado a SED em muitos pacientes críticos (cirurgias de grande porte, sepse, SIRS, além da própria covid-19). As citocinas têm efeito sobre o eixo hipotálamo-hipófise-tireoide, diminuindo a responsividade do TSH e ocasionando níveis mais baixos de T3 livre.
A relação com doença autoimune não é bem compreendida. Supõe-se que a tempestade de citocinas pode ativar reações autoimunes latentes ou desencadear o início da doença autoimune. A tireoidite subaguda apresentou associação com covid-19 em diversos estudos, com grande número de pacientes, mostrando, portanto, baixo risco de viés. Uma vez que esta é comumente desencadeada por infecções virais, a associação parece ser plausível. Já a doença de Graves e a tireoidite de Hashimoto foram associadas à covid-19 em um número pequeno de indivíduos. Este achado sugere que mais estudos são necessários para investigar a associação.
Dada a associação da covid-19 com diversas patologias tireoidianas, bem como a ocorrência de sintomas sugestivos (principalmente em pacientes com covid longo), devemos estar atentos a esta associação na clínica e avaliar a necessidade de investigar disfunções tireoidianas neste grupo.
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