A fome é um processo biológico fundamental para a sobrevivência e adaptação do organismo às variações na disponibilidade de energia. Ao longo da evolução, o ser humano desenvolveu mecanismos de regulação do apetite para garantir um balanço energético adequado frente às oscilações do ambiente. No entanto, com a transição nutricional ocorrida nas últimas décadas, caracterizada pelo acesso irrestrito a alimentos altamente calóricos e ultraprocessados, os sistemas que regulam a fome passaram a ser desafiados, contribuindo para a crescente prevalência de obesidade e doenças metabólicas.
A fome não é simplesmente um reflexo da necessidade energética imediata do organismo, mas um processo complexo regulado por múltiplos sistemas, incluindo o eixo intestino-cérebro, os circuitos dopaminérgicos de recompensa e a microbiota intestinal. Esse controle se dá pela integração de sinais hormonais, neurais e metabólicos, que modulam o comportamento alimentar e ajustam o gasto energético conforme a disponibilidade de nutrientes e a demanda fisiológica.
Além do apetite homeostático, guiada pela necessidade biológica de reposição calórica, existem influências hedônicas (“vontade”), emocionais e ambientais que tornam a regulação do apetite mais complexa, ou seja: a ingestão alimentar pode ser estimulada por prazer, fatores emocionais ou sociais, dissociando-se da necessidade fisiológica. Recentemente também é crescente o interesse em compreender o papel que a microbiota intestinal também exerce na modulação do apetite, uma vez que estudos demonstram sua interação com o metabolismo e influência sobre a secreção de hormônios intestinais.
Diante desse cenário, compreender a fisiologia da fome é crucial para o desenvolvimento de estratégias terapêuticas eficazes contra doenças metabólicas. Dada a relevância do tema, foi elaborada e publicada recentemente uma revisão acerca da fisiologia da fome no The New England Journal of Medicine (NEJM), um dos principais periódicos médicos do mundo. Trazemos no portal para a importante discussão sobre os mecanismos que nos levam a comer.
“Eixo intestino-cérebro”
A regulação do apetite ocorre por meio de uma complexa comunicação entre o trato gastrointestinal, o sistema nervoso central (SNC) e hormônios periféricos, formando o eixo intestino-cérebro. Diferentes circuitos neuronais e hormonais interagem para modular o comportamento alimentar, ajustando a ingestão calórica conforme a necessidade metabólica do organismo.
O hipotálamo é o centro primário de controle da fome e da saciedade. Nele, destacam-se dois núcleos principais:
- Núcleo arqueado (ARC): Localizado na base do hipotálamo, próximo à barreira hematoencefálica, permite a detecção de sinais metabólicos periféricos, como níveis de glicose, ácidos graxos e hormônios intestinais.
- Núcleo paraventricular (PVN): Atua na integração dos sinais provenientes do ARC e regula a resposta autonômica e endócrina ao estado nutricional.
No núcleo arqueado, há dois grupos principais de neurônios envolvidos na regulação do apetite:
- Neurônios orexigênicos (estimuladores da fome): Expressam neuropeptídeo Y (NPY) e peptídeo relacionado a agouti (AgRP), promovendo a sensação de fome.
- Neurônios anorexigênicos (inibidores da fome): Expressam proopiomelanocortina (POMC) e transcrito relacionado à cocaína e anfetamina (CART), induzindo saciedade.
A fome é ativada pela ação da grelina, hormônio produzido pelo estômago durante o jejum, que estimula os neurônios NPY/AgRP e inibe os neurônios POMC/CART. Esse efeito resulta no aumento da ingestão alimentar e na inibição do gasto energético.
Por outro lado, a saciedade é promovida por hormônios intestinais, como principalmente o GLP-1, PYY e colecistocinina (CCK), que ativam os neurônios anorexigênicos e reduzem a atividade dos neurônios orexigênicos. Há diversos outros sinalizadores anorexigênicos.
Papel do trato gastrointestinal
O trato gastrointestinal desempenha um papel essencial na sinalização da fome e da saciedade, atuando por meio de três mecanismos principais:
- Sinais mecânicos – A distensão gástrica estimula receptores vagais, enviando sinais de saciedade ao hipotálamo.
- Sinais hormonais – Hormônios secretados pelo trato digestivo regulam o apetite de forma autócrina e endócrina.
- Sinais metabólicos – A absorção de nutrientes modula diretamente a atividade neuronal hipotalâmica.
Os principais hormônios intestinais envolvidos nesse processo são, como mencionados anteriormente:
- Grelina: O único hormônio periférico conhecido por estimular a fome. Secretado pelo estômago no jejum, ativa receptores no hipotálamo e no tronco encefálico.
- GLP-1 (peptídeo semelhante ao glucagon-1): Produzido no íleo e cólon, retarda o esvaziamento gástrico e promove saciedade ao estimular neurônios anorexigênicos.
- PYY (peptídeo YY): Secretado pelas células L intestinais, reduz a motilidade gastrointestinal e prolonga a saciedade.
- CCK (colecistocinina): Estimula receptores vagais e inibe a ingestão alimentar ao promover a liberação de enzimas digestivas.
Circuitos de recompensa e o apetite hedônico
O apetite hedônico, ou seja, motivado por desejo e vontade, é impulsionada pelo sistema dopaminérgico mesolímbico, particularmente pelo circuito que envolve o núcleo accumbens, o córtex pré-frontal e a área tegmental ventral (VTA).
A ingestão de alimentos altamente palatáveis estimula a liberação de dopamina, reforçando o comportamento alimentar mesmo na ausência de necessidade metabólica. Esse sistema pode ser ativado por fatores emocionais, sociais e ambientais, contribuindo para o comportamento alimentar compulsivo.
A modernização dos hábitos alimentares, marcada pela oferta abundante de alimentos ultraprocessados, favorece a desregulação desse sistema. A exposição frequente a açúcares refinados e gorduras saturadas reforça circuitos neurais de recompensa, dificultando a regulação natural do apetite e promovendo a ingestão excessiva de calorias.
Veja também: Impacto do sistema de recompensa na regulação do apetite
Microbiota intestinal
Estudos recentes indicam que a microbiota intestinal exerce influência significativa na regulação do apetite. A composição bacteriana do intestino afeta a secreção de hormônios intestinais e a produção de metabólitos que modulam a atividade neuronal hipotalâmica. Metabólitos como ácidos graxos de cadeia curta (AGCCs), indole e triptofano interagem com receptores intestinais, influenciando a liberação de GLP-1 e PYY. A disbiose intestinal, caracterizada pela redução da diversidade bacteriana e pelo aumento de espécies patogênicas, tem sido associada ao aumento da fome e ao desenvolvimento de obesidade.
Considerações
A fisiologia da fome é um processo complexo que envolve múltiplos sistemas reguladores, desde o controle hipotalâmico até a interação com a microbiota intestinal. O avanço no conhecimento desses mecanismos tem permitido o desenvolvimento de intervenções terapêuticas mais eficazes, incluindo medicações que modulam os sistemas de saciedade e recompensa.
O uso de agonistas do receptor de GLP-1, como semaglutida e tirzepatida, tem mostrado resultados promissores na regulação do apetite e na promoção da perda de peso. No entanto, sua ação sobre a fome hedônica e a microbiota intestinal ainda não é completamente compreendida.
Além do tratamento farmacológico, estratégias comportamentais, dietéticas e moduladoras da microbiota emergem como potenciais abordagens para a prevenção e o manejo da obesidade e de transtornos alimentares. A evolução do conhecimento acerca da regulação do apetite continuará a desempenhar um papel crucial na busca por intervenções que promovam um balanço energético saudável e uma melhor qualidade de vida.
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