As complicações musculoesqueléticas de membros superiores em pessoas com diabetes, definidas como um conjunto de condições que afetam diferentes tecidos, podendo resultar em dor, redução de mobilidade e perda de função sensorial ou motora, permanecem pouco reconhecidas na prática clínica, apesar de sua elevada prevalência e impacto funcional significativo. Afetam articulações, tendões, nervos, fáscias e pele, sendo até três vezes mais frequentes em indivíduos com diabetes tipo 1 e tipo 2 quando comparados à população sem diabetes. Com o aumento da sobrevida e o envelhecimento da população com diabetes, esses desfechos compõem um espectro clínico cada vez mais relevante, frequentemente coexistindo com complicações microvasculares e contribuindo para dor, limitação funcional e redução da qualidade de vida.
Ainda que existam dados epidemiológicos consistentes para condições como ombro congelado, dedo em gatilho, doença de Dupuytren, síndrome do túnel do carpo, aprisionamento do nervo ulnar, osteoartrite do trapézio e limitação da mobilidade articular, os mecanismos fisiopatológicos permanecem parcialmente esclarecidos. Evidências apontam para o papel da hiperglicemia crônica, glicação do colágeno e inflamação persistente como elementos centrais no desenvolvimento dessas alterações, moduladas por fatores modificáveis, como controle glicêmico inadequado, obesidade e tabagismo.
Apesar do impacto clínico, funcional e psicossocial dessas complicações, o reconhecimento precoce ainda é insuficiente, e grande parte das decisões terapêuticas baseia-se na experiência clínica em vez de dados robustos. Recentemente, foi publicado no Diabetes Care, revista da American Diabetes Association (ADA), uma revisão sobre o tema que sintetiza o estado atual do conhecimento e reforça a necessidade de incorporar a avaliação sistemática dos membros superiores na rotina do cuidado ao diabetes, com foco em diagnóstico precoce, intervenção dirigida e estratégias preventivas. Trazemos os principais pontos da revisão aqui no portal.

A revisão
A revisão narrativa foi conduzida por um grupo interdisciplinar ligado ao Steno Diabetes Center Copenhagen e universidades escandinavas, integrando endocrinologistas, cirurgiões ortopédicos e especialistas em cirurgia da mão. Foram reunidos dados de registros populacionais, coortes observacionais e estudos clínicos europeus e asiáticos, discutindo epidemiologia, mecanismos e condutas terapêuticas com base em evidência disponível e consenso clínico. Por questões didáticas, abordaremos de acordo com os diagnósticos mais relevantes.
- Capsuliteadesiva (Ombro congelado)
A capsulite adesiva (ou “ombro congelado”) caracteriza-se por inflamação e espessamento da cápsula glenoumeral, com dor intensa e perda progressiva da amplitude de movimento. Em diabéticos, sua prevalência é de 3 a 5 vezes maior que na população geral, atingindo até 59% dos portadores de DM1 e até 29% dos de DM2.
Os autores da revisão destacam sua fisiopatologia, que combina inflamação local com liberação de IL-17A, proliferação de fibroblastos e deposição de colágeno, exacerbada pela hiperglicemia e pelo aumento de espécies reativas de oxigênio. Histologicamente, há elevação do colágeno tipo III e aumento da razão colágeno III:I, o que traduz um tecido mais rígido e fibroso.
O tratamento inclui infiltração de corticosteroide intra-articular nas fases iniciais (embora com risco de hiperglicemia transitória e necessidade de ajuste insulínico), fisioterapia direcionada e, em casos refratários, manipulação sob anestesia ou capsulotomia artroscópica. O prognóstico é pior em diabéticos, com maior risco de recidiva e rigidez residual.
- Doença deDupuytren(DD)
A fibrose progressiva da fáscia palmar, levando a contraturas em flexão dos dedos, é três vezes mais prevalente em diabéticos, especialmente em homens e nos portadores de DM1 de longa duração.
Estudos genômicos identificaram múltiplas vias envolvidas, incluindo sinalização Hedgehog, Notch e WNT7B, que interagem com o metabolismo glicídico. A fibrose palmar decorre da proliferação miofibroblástica e do acúmulo de colágeno denso, exacerbado pela glicação e hipóxia tecidual.
Clinicamente, o paciente apresenta nódulos e cordões fibrosos na palma, com perda progressiva da extensão dos dedos. O manejo inclui infiltração com corticoide em fases iniciais e, em contraturas funcionais, fasciectomia parcial ou fasciotomia percutânea. Embora os resultados cirúrgicos sejam semelhantes aos de não diabéticos, o risco de infecção e recidiva é mais alto.
- Dedo em gatilho (TriggerFinger)
A “tenossinovite estenosante” decorre do espessamento do tendão flexor, gerando o travamento característico durante a flexão. A prevalência é de 10 a 12% nos diabéticos (contra 2 a 3% na população geral), com maior incidência no DM1 e associação consistente a HbA1c elevada, idade avançada, sexo feminino e maior tempo de doença.
O tratamento conservador com infiltração de corticoide infelizmente apresenta alta taxa de falha (até 75%) em diabéticos, razão pela qual a liberação cirúrgica precoce do tendão é considerada mais custo-efetiva. A inflamação persistente e o espessamento colagenoso explicam a recorrência frequente e a rigidez residual de articulações interfalângicas.
- Síndrome do túnel do carpo (CTS)
A compressão do nervo mediano no punho é duas a três vezes mais frequente em diabéticos e representa o quadro neuropático mais comum neste grupo. Além da compressão mecânica, há um componente metabólico, gerado pela hiperglicemia e disfunção endoneural, que aumentam a vulnerabilidade do nervo à isquemia.
A apresentação clínica inclui parestesias noturnas, dor e fraqueza em região tenar. O tratamento cirúrgico (liberação do ligamento transverso do carpo) é o mais eficaz e deve ser indicado precocemente para evitar degeneração axonal. No pós-operatório, diabéticos apresentam recuperação sensorial mais lenta e maior risco de infecção, relacionado ao nível de HbA1c.
- Aprisionamento do nervo ulnar (UNE)
A compressão do nervo ulnar, geralmente no cotovelo, causa parestesias no quarto e quinto dedos, fraqueza intrínseca e, em casos graves, atrofia e deformidade em garra. Embora rara (~2%), chega a ser 3 a 4 vezes mais comum em diabéticos, e associa-se também a HbA1c elevada, tabagismo e dislipidemia. O manejo inicial deve ser conservador (órteses e medidas ergonômicas), mas casos avançados podem requerer descompressão ou transposição nervosa. Homens diabéticos tendem a evoluir com piores resultados funcionais pós-cirurgia, possivelmente por neuropatia concomitante e alterações microvasculares.
- Osteoartrite da base do polegar
A osteoartrite da articulação carpometacarpal é duas a três vezes mais prevalente em diabéticos, especialmente mulheres e idosos. O processo envolve glicação da cartilagem, inflamação sinovial crônica e alterações biomecânicas do colágeno articular, contribuindo para dor, deformidade e limitação de pinça.
O tratamento é escalonado, com uso de analgésicos e órteses nas fases iniciais; infiltração de corticoide nos casos dolorosos; e trapeziectomia ou artroplastia nas formas avançadas. A presença de diabetes aumenta o risco de reoperações e infecções, exigindo monitorização rigorosa no pós-operatório.
- Mobilidade articular limitada (“cheiroartropatiadiabética”)
Trata-se de uma manifestação quase patognomônica do diabetes, caracterizada por rigidez indolor das mãos e “sinal da oração positiva”. A prevalência é de 31 a 35% no DM2 e até 50% no DM1 de longa duração. Estudos correlacionam a condição com o acúmulo de AGEs na pele e tendões, espessamento da membrana basal e redução da perfusão capilar cutânea, levando à rigidez e limitação funcional progressiva. Não há tratamento específico, mas fisioterapia e alongamentos podem preservar função. O reconhecimento precoce desse sinal clínico é importante por estar fortemente associado à presença concomitante de retinopatia e neuropatia periférica.
O que podemos aprender com este estudo e como ele influencia nossa prática médica
Esta revisão ajuda a compreender melhor as complicações em membros superiores relacionadas ao diabetes, que acarretam não apenas limitações funcionais, mas também uma sobrecarga psicológica e socioeconômica expressiva, uma vez que comprometem o desempenho profissional, reduzem a qualidade de vida e aumentam a dor crônica. Pacientes com múltiplas lesões apresentam risco ampliado de depressão e afastamento laboral precoce, sobretudo quando coexistem neuropatia ou longa duração do diabetes.
Na prática clínica, a anamnese e o exame físico direcionado para sintomas de rigidez, dor, perda de força ou parestesias em ombros e mãos devem integrar o seguimento rotineiro, sobretudo em pacientes com mais de 10 anos de diabetes, HbA1c persistentemente elevada ou presença de complicações microvasculares.
O artigo também reforça que o controle glicêmico intensivo é um fator protetor contra o desenvolvimento e progressão dessas condições, por reduzir a glicação tecidual e a inflamação crônica. Abordagens multidisciplinares envolvendo endocrinologistas, fisioterapeutas e ortopedistas tornam-se fundamentais, uma vez que o tratamento bem sucedido da condição depende tanto do manejo metabólico quanto da reabilitação funcional.
Autoria

Luiz Fernando Fonseca Vieira
Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) - Faculdade de Medicina de Botucatu
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