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Endocrinologia22 julho 2025

Bloqueio puberal em adolescentes transgêneros e as restrições normativas

O que a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) reforça a respeito de evidências atuais frente às restrições.
Por Paulo Melo

A identidade de gênero é complexa e multifatorial, resultante da interação entre fatores genéticos, hormonais e neurológicos. A incongruência de gênero (IG), conforme definida na Classificação Internacional de Doenças (CID-11), refere-se a uma discrepância persistente entre o gênero vivenciado por uma pessoa e o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento, sem necessariamente causar sofrimento. Já a disforia de gênero (DG), segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª edição (DSM-5), caracteriza-se pela presença de sofrimento ou desconforto clinicamente significativo decorrente dessa incongruência. 

A supressão puberal com agonistas do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRHa) pode ser indicada em adolescentes transgêneros. Essa intervenção oferece tempo para a consolidação da identidade de gênero, previne o desenvolvimento de características sexuais secundárias irreversíveis potencialmente geradoras de sofrimento, e facilita a transição para a terapia hormonal afirmativa. 

Apesar de ser amplamente utilizada no cenário internacional, essa abordagem permanece controversa e tem sido alvo de intenso debate no Brasil, especialmente após a publicação da Resolução CFM nº 2.427/2025 em abril, que proíbe o uso de bloqueadores hormonais em crianças e adolescentes com IG. Diante disso, uma nova revisão sistemática traz uma síntese atualizada das evidências sobre eficácia e segurança do tratamento com GnRHa, avaliando desfechos como desenvolvimento físico, saúde óssea e saúde mental. 

Metodologia

A revisão sistemática abrangeu estudos publicados entre 2011 e 2024, selecionados nas principais bases científicas da área médica. Foram incluídos adolescentes com menos de 18 anos, diagnosticados com IG ou DG, que receberam tratamento com GnRHa. Dois revisores independentes realizaram a triagem dos artigos e extração dos dados. Os desfechos foram agrupados em cinco categorias: mudanças físicas/hormonais, saúde óssea, saúde mental, fertilidade/função sexual e efeitos adversos/câncer. 

A maioria dos estudos era observacional e, devido à heterogeneidade metodológica, não foi possível realizar uma meta-análise. Os dados foram sintetizados de forma narrativa, com foco especial nos 22 estudos com nível de evidência moderado a alto, destacando os efeitos clínicos do bloqueio puberal e seus impactos na composição corporal, saúde mental e densidade óssea. 

Resultados encontrados e discussão

Com base nos desfechos analisados, a revisão permite compreender melhor os efeitos clínicos da intervenção, as lacunas na literatura e as recomendações práticas para seguimento. Esses são os principais pontos: 

Mudanças físicas e hormonais: 

O uso de GnRHa mostrou-se eficaz na supressão da puberdade e na inibição das características sexuais secundárias. Observou-se uma redução temporária da velocidade de crescimento, embora a altura final tenha permanecido próxima à altura-alvo. Embora tenha sido observada uma discreta mudança da composição corporal durante o bloqueio puberal, após a introdução da terapia hormonal afirmativa, a distribuição de gordura passou a se assemelhar ao gênero afirmado. 

Saúde óssea: 

Com o uso de GnRHa, houve redução na densidade mineral óssea, porém, com a introdução da hormonização, parte da perda foi revertida, mas os níveis nem sempre retornaram aos valores basais. Marcadores de remodelação óssea indicaram baixa atividade óssea durante o bloqueio puberal. No entanto, a longo prazo, não foram observados casos de osteoporose na adolescência, Vale ressaltar que os autores advertem sobre a necessidade de acompanhamento contínuo e de estudos mais robustos sobre esse tema em específico. 

Saúde mental: 

Os estudos demonstraram melhora expressiva na função global, com redução de sintomas emocionais e comportamentais, além de queda significativa nas taxas de ideação suicida e autolesão. Depressão e ansiedade diminuíram, aproximando-se dos níveis encontrados em adolescentes cisgênero. 

 Fertilidade e função sexual: 

Esse foi um ponto em que a revisão encontrou escassez de estudos com boa qualidade. Logo, os dados disponíveis não foram suficientes para conclusões definitivas, reforçando a necessidade de mais pesquisas longitudinais. 

Efeitos adversos e risco de câncer: 

Não foram identificados efeitos adversos graves nem aumento do risco de câncer nos estudos avaliados com qualidade moderada ou alta. Contudo, há pouca evidência disponível, sendo recomendável o monitoramento contínuo e a coleta sistemática de dados clínicos a longo prazo.

Conclusão

Em conjunto com outras entidades médicas, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) reforça que as evidências atuais respaldam a eficácia e a segurança da terapia hormonal em pessoas transgênero. A presente revisão sistemática contribui para essa compreensão, ao mostrar benefícios significativos, especialmente em saúde mental. 

A recente proibição imposta pelo CFM levanta preocupações éticas e assistenciais, ao limitar o acesso à saúde e aos tratamentos da população transgênero. É importante lembrar que, no Brasil, o bloqueio puberal é permitido apenas em caráter experimental, dentro de protocolos rigorosos conduzidos por centros de referência. Proibir esse tipo de intervenção compromete a possibilidade de seguimento clínico adequado e de desenvolvimento de novas evidências que possam nortear boas práticas em saúde. 

Autoria

Foto de Paulo Melo

Paulo Melo

Graduação em Medicina pela Universidade Federal do Ceará. Residência Médica em Clínica Médica pela Universidade Federal do Piauí e Residência Médica em Endocrinologia e Metabologia pela Santa Casa de Belo Horizonte. Possui título de especialista pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. É mestrando e professor da área de endocrinologia na Afya Educação Médica.

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Referências bibliográficas

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