O 85º congresso da American Diabetes Association (ADA) abriu o segundo dia com grandes novidades, porém desta vez não apenas no campo do DM2 ou obesidade, mas também no tratamento do diabetes tipo 1 (DM1).
A busca pela cura do diabetes tipo 1 (DM1) avançou de forma significativa nas últimas décadas, com o desenvolvimento de tecnologias de monitorização contínua da glicose, bombas de insulina e algoritmos automatizados que mimetizam parcialmente a função pancreática. Ainda assim, grande parte das pessoas com DM1 permanece fora das metas glicêmicas recomendadas pelas sociedades internacionais, como uma hemoglobina glicada (HbA1c) inferior a 7% e tempo em faixa glicêmica acima de 70%, seja pela dificuldade em adaptação às tecnologias ou ao tratamento, seja pela falta de acesso à tais opções de tratamento. No Brasil, por exemplo, temos apenas um modelo de bomba de insulina de alça fechada até então, a MiniMed 780G.
Além da dificuldade do controle adequado, episódios recorrentes de hipoglicemia grave, especialmente em pacientes com consciência hipoglicêmica comprometida, continuam a representar risco significativo à saúde e à vida. O controle exógeno da glicose, mesmo quando altamente tecnologizado, ainda é uma simulação imperfeita do controle endógeno mediado pelas ilhotas pancreáticas.
Dentro desse contexto, uma das apresentações mais revolucionárias do ADA 2025 foi a do estudo VX-880-101 FORWARD, que investigou uma terapia baseada em células-tronco para a restauração da função das ilhotas pancreáticas em indivíduos com DM1. A proposta foi administrar o zimislecel — um produto composto por ilhotas totalmente diferenciadas derivadas de células-tronco pluripotentes — por infusão única na veia porta, com o objetivo de restabelecer a secreção endógena de insulina. A ideia é simples, porém ousada: substituir as células beta destruídas por uma nova população funcional, produzida em laboratório, capaz de responder fisiologicamente às variações da glicemia. Ao contrário do transplante tradicional de ilhotas de doadores falecidos, essa abordagem oferece uma fonte teórica ilimitada de tecido, com padronização e maior controle de qualidade. O zimislecel representa, portanto, um novo patamar na medicina regenerativa, com potencial de transformar profundamente o manejo do DM1.
O estudo
O VX-880-101 FORWARD é um estudo multicêntrico, aberto e em andamento (atualmente em fase 3). Os resultados apresentados foram de fases 1–2, com acompanhamento total planejado de 5 anos, conduzido em centros na América do Norte e Europa. Nesta análise interina, apresentada no ADA 2025 e publicada concomitantemente hoje no NEJM, foram apresentados dados de 14 participantes que haviam completado ao menos 12 meses de seguimento após a infusão de zimislecel, sendo que dois deles receberam uma dose reduzida (0,4 bilhões de células) e os outros doze, a dose completa (0,8 bilhões). Esses últimos, que compõem as partes B e C do estudo, foram os principais focos da análise de eficácia.
A população incluída era composta por adultos entre 24 e 60 anos, com média de idade de 42,7 anos e duração média de diabetes de mais de 22 anos, com média de HbA1c de 7,8%, além de uma média de 2,7 eventos de hipoglicemia grave por ano. Todos apresentavam ausência total de produção endógena de insulina (peptídeo C indetectável). Mesmo com o uso de terapias modernas — dois terços utilizavam bomba de insulina e metade fazia uso de sistema híbrido de circuito fechado — a média de tempo em faixa glicêmica era inferior a 50%, demonstrando o alto grau de complexidade e instabilidade glicêmica desse grupo.
A administração do zimislecel foi realizada por infusão intraportal única, em protocolo semelhante ao usado para transplante de ilhotas, mas com a importante diferença de que as células foram produzidas in vitro a partir de linhagens pluripotentes, totalmente diferenciadas antes da infusão. Todos os participantes receberam imunossupressão sem corticosteroides, com protocolo específico de indução e manutenção (Indução com ATG (6 mg/kg) e metilprednisolona apenas no primeiro dia e manutenção com sirolimus + tacrolimus, com possível substituição por micofenolato de mofetila ou sódico). O desfecho primário da parte C do estudo consistia na ausência de hipoglicemia grave entre os dias 90 e 365 após o procedimento, associada a uma HbA1c inferior a 7% ou a uma redução de pelo menos 1 ponto percentual em relação ao valor basal. Entre os desfechos secundários estavam a independência de insulina exógena e a demonstração de função das ilhotas por meio da produção sustentada de peptídeo C.
Resultados impressionantes: todos os 12 pacientes que receberam a dose completa passaram a produzir peptídeo c, detectável já aos 90 dias e em curva ascendente
O resultado foi impressionante. Todos os 12 participantes que receberam a dose completa passaram a produzir C-peptídeo detectável já aos 90 dias, com níveis progressivamente crescentes até o dia 365, demonstrando engajamento funcional e durabilidade do enxerto. O pico de peptídeo C estimulado no teste de refeição mista atingiu valores superiores a 1200 pmol/L ao final de um ano, muito acima do limiar funcional estabelecido para enxertos eficazes. Essa recuperação funcional foi acompanhada por uma melhoria dramática no controle glicêmico: todos os participantes alcançaram HbA1c <7% já no quarto mês de seguimento, e mantiveram esse controle durante todo o período analisado. O tempo em faixa glicêmica passou de menos de 50% para uma média superior a 93%, com menor variabilidade glicêmica.
83% dos participantes puderam suspender completamente o uso de insulina
A resposta clínica foi ainda mais notável quando se considerou a independência da insulina. Dez dos doze participantes com dose completa suspenderam totalmente o uso de insulina exógena — alguns a partir do dia 150 — e permaneceram sem necessidade de reinício até o final do acompanhamento. Os dois restantes, embora não tenham alcançado independência total, apresentaram reduções significativas (70% e 36%) no uso de insulina, associadas a controle glicêmico adequado. Ambos haviam recebido glicocorticoides inadvertidamente no período pós-transplante, o que pode ter comprometido o engajamento completo das ilhotas transplantadas.
O dado mais expressivo, no entanto, foi o desfecho primário: nenhum dos 12 participantes apresentou episódios de hipoglicemia grave após a infusão de zimislecel, um feito notável diante do histórico prévio desses indivíduos.
Segurança
O zimislecel apresentou um perfil tolerável dentro do esperado para uma terapia celular associada a imunossupressão. A maioria dos eventos adversos foi leve ou moderada, com queixas como náuseas, cefaleia, diarreia e úlceras orais. Eventos infecciosos como Covid-19 também foram reportados, assim como casos de rash e alterações hematológicas, especialmente neutropenia.
Três participantes apresentaram neutropenia grave, com necessidade de internação para observação. Dois casos de injúria renal aguda foram registrados, ambos reversíveis. Dois óbitos ocorreram durante o estudo: o primeiro por meningite criptocócica, considerada secundária ao uso não autorizado de altas doses de corticosteroides em paciente imunossuprimido; o segundo em paciente com antecedente de trauma cranioencefálico grave, que evoluiu com demência e agitação, sem relação direta com a intervenção. Em ambos os casos, os investigadores não atribuíram causalidade direta ao zimislecel.
As alterações laboratoriais observadas (transaminases, função renal, contagem de leucócitos) foram compatíveis com o regime imunossupressor utilizado e, em sua maioria, reversíveis.
Conclusões e perspectivas
Os achados interinos do estudo VX-880-101 FORWARD representam uma das maiores conquistas da medicina regenerativa aplicada ao diabetes tipo 1. Pela primeira vez, foi demonstrado de forma inequívoca que ilhotas pancreáticas produzidas a partir de células-tronco pluripotentes podem engajar, funcionar e substituir de forma eficaz a insulina exógena em seres humanos, promovendo controle glicêmico sustentado, eliminação de hipoglicemias graves e independência da insulina em grande parte dos casos. Ainda que a necessidade de imunossupressão limite por ora sua aplicabilidade em larga escala, esse é um passo crucial em direção à cura funcional do DM1. O zimislecel não é apenas uma nova terapia, mas o prenúncio de uma nova era no tratamento do diabetes tipo 1. A continuidade dos estudos e a evolução das estratégias de proteção imunológica definirão se essa abordagem poderá se tornar acessível e replicável em larga escala, o que traria um impacto imensurável em termos de saúde pública e qualidade de vida.
A Vertex, laboratório responsável pelo estudo e desenvolvimento do VX-880 já tem também programas em desenvolvimento com células pluripotentes associadas a estratégias para fuga imunogênica, que levaria potencialmente à ausência da necessidade de uso de imunossupressores.
O VX-264 é um projeto que traz também a mesma terapia de células beta porém utilizando um device encapsulado com propriedades imunoprotetoras, implantável na parede abdominal. A grande vantagem é a eliminação da necessidade de imunossupressão, fator que mudaria completamente o curso do manejo do DM1. Além disso, também existe o projeto VCTX211, que avalia medidas de edição gênica para promover escape imunológico. Se o VX-880 já parece apresentar uma revolução nestes dados interinos, apenas imaginemos se esse novo projeto também funcionar.
Devido à sua relevância, o estudo foi publicado no NEJM concomitantemente à apresentação no ADA 2025. Continue acompanhando a nossa cobertura, pois o congresso está apenas começando!
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