A gestão da glicemia no período periparto é um dos momentos mais complexos e sensíveis do cuidado obstétrico em mulheres com diabetes. Esse momento crítico envolve uma série de desafios fisiológicos e clínicos: oscilações abruptas na sensibilidade à insulina logo após o parto, interferência de intervenções obstétricas e neonatais, uso ou não de insulina, sua forma de administração, dentre outros. Tudo isso exige do endocrinologista e do obstetra uma abordagem precisa e, acima de tudo, individualizada.
A definição dos alvos glicêmicos durante o trabalho de parto permanece uma das questões mais controversas no cuidado da gestante com diabetes. A hiperglicemia materna intraparto está associada a desfechos neonatais adversos, sobretudo classicamente associado à hipoglicemia neonatal. Por outro lado, metas glicêmicas excessivamente rígidas podem predispor a hipoglicemias maternas, com risco para ambos, além de maior uso de insulina e impacto psicológico. Ao longo dos anos, diferentes sociedades estabeleceram diretrizes com margens variadas, e a prática clínica segue marcada por grande heterogeneidade.
Paralelamente, os avanços tecnológicos nas últimas décadas — especialmente os sistemas de monitorização contínua da glicose (CGM) e as bombas de infusão contínua de insulina (SICI) — ampliaram as possibilidades de um controle mais preciso durante o período intraparto. No entanto, o uso dessas tecnologias durante o trabalho de parto ainda encontra resistência institucional e dúvidas sobre sua eficácia e aplicabilidade nesse cenário específico. Na sessão do ADA 2025, as especialistas Dra. Michal Bartal e Dra. Lois E. Donovan abordaram justamente essas duas frentes: o quanto devemos flexibilizar os alvos glicêmicos no parto e qual o papel das tecnologias no controle glicêmico intraparto.
Revisitando os alvos glicêmicos intraparto
A Dra. Michal Bartal deu início à sessão discutindo a pertinência dos alvos glicêmicos tradicionalmente adotados durante o trabalho de parto. Embora o intervalo de 70 a 110 mg/dL seja amplamente aceito como seguro e protetor contra complicações neonatais — sobretudo a hipoglicemia fetal —, evidências mais recentes tem questionado se tais metas devem ser universais para todas as gestantes com diabetes.
Em primeiro lugar, é importante entender o porquê de controlar a glicemia no parto. Como mencionado anteriormente, o principal objetivo com a medida é reduzir o risco de hipoglicemia neonatal (complicação mais comum, ocorrendo cerca40%), que está associada a admissões em UTI e possivelmente a consequências posteriores, como maior risco de piora de funções executivas (OR 2,3) ou de função motora/visual (OR 3,7).
Diversos fatores de risco são descritos para a hipoglicemia neonatal. A Dra. Bartal separou didaticamente tais fatores em 3 grandes grupos: Os relacionados às características de base da gestante como o tipo de DM, IMC materno, tabagismo, controle de DM pré gestação; fatores anteparto como o controle do DM, ganho de peso, RNs GIG (grandes para idade gestacional), adiposidade neonatal e fatores intraparto, dos quais se questiona o papel da hiperglicemia materna como um possível fator de risco.
Atualmente, a recomendação de manejo da glicemia materna visa atingirmos um controle estrito da glicemia. O ACOG 2018 traz a meta de 70-110 mg/dL, por exemplo, com monitorização de hora em hora, enquanto outras sociedades como o NICE trazem também recomendações de monitorização de hora em hora, com alvo de glicemia entre 4 e 7 mmol/l (72 a 126 mg/dL) e considerar o uso de glicose e insulina endovenosas para gestantes com DM1 ou para aquelas que não conseguiram atingir a meta com o controle convencional.
Contudo, ao revisar a literatura, a Dra. Bartal deixa claro que não há evidências de qualidade que sustentem tais abordagens. O primeiro estudo (Hamel et al, 2019), comparou em um ensaio clínico randomizado (RCT) os desfechos relacionados a um controle glicêmico mais restrito vs. menos, restrito, não encontrando diferenças. Outro estudo, desta vez uma coorte retrospectiva, trouxe dados evidenciando que o tratamento com insulina foi capaz de reduzir as glicemias, mas também sem diferença em desfechos neonatais. Uma metanálise recente, de 2024, mostra que apenas um artigo sobre o tema foi um RCT (o comentado previamente) e os demais estudos trazem dados conflitantes, concluindo que há pouca evidência para conclusões.
A Dra segue com a discussão de evidências, mostrando um outro RCT próprio de seu grupo que comparou valores de glicose no período periparto, obtidos a partir do uso de um CGM, com o risco de complicações neonatais. Cerca de 27% das gestantes tiveram uma média de glicemia maior que 110 mg/dL durante o parto. Não houve associação entre os valores de glicemia maternos apresentados com um risco aumentado de hipoglicemia neonatal baseado na média glicêmica.
Para tentar por fim à dúvida, a Dra Bartal ainda trouxe um último estudo, o PERMIT, publicado em 2024 na AJOG, comparando as metas de 70-110 mg/dL e 70-180 mg/dL. Não houve diferença nos desfechos materno-fetais; contudo, a média glicêmica atingida em ambos os grupos foi parecida.
Em conclusão, apesar de algumas tendências observacionais mostrarem maior risco de hipoglicemia neonatal com níveis glicêmicos intraparto mais elevados, não há evidências no momento que suportem tais dados e é possível que níveis considerados normais possam ser feitos. Devemos ponderar que a monitorização frequente durante trabalho de parto e o tratamento com insulina podem levar a riscos e à impactos psicológicos para a gestante. Portanto, como quase tudo no diabetes durante a gestação, é necessário maiores evidências para conclusões claras, mas aparentemente é possível que as metas da glicemia durante o parto possam ser mais frouxas, na opinião da Dra. Bartal.
O uso das novas tecnologias durante o parto: monitores contínuos de glicose e bombas de insulina
Já com relação ao uso de tecnologias durante o parto, a Dra. Lois Donovan apresentou evidências e experiências clínicas sobre o uso da monitorização contínua da glicose (CGM) e das bombas de infusão contínua de insulina (SICI) nesse contexto. O papel da tecnologia no cuidado periparto tem avançado, mas ainda levanta dúvidas quanto à sua aplicação em ambientes hospitalares, especialmente em situações agudas como o trabalho de parto.
A palestrante iniciou a sua parte da apresentação direcionando o foco dos ouvintes à segurança do uso de tecnologias em diabetes no periparto e a dividiu em duas partes: CGMs e bombas de insulina.
O uso de monitores contínuos de glicose durante o parto
Os dados acerca do uso de CGMs durante o período de parto apontam para a segurança e acurácia dos dados. Em dois estudos abordados pela palestrante, advindos de dados retrospectivos, os dispositivos foram confiáveis para a decisão clínica quando comparados à glicemia capilar. A conclusão aqui foi bem simples: Pode usar o CGM, com o detalhe de que se houver suspeita de hipoglicemia assintomática, é importante confirmar com a medida da glicemia capilar. Vale lembrar que o CGM só está aprovado até o momento para gestantes com DM1.
Bombas de insulina e dispositivos de alça fechada: são seguros?
Em primeiro lugar, a Dra Donovan apresentou um ensaio clínico randomizado (RCT) de bombas de insulina convencionais (open loop), com 70 gestantes com DM1, que demonstrou que o uso do dispositivo durante o parto foi seguro e possível de usar, trazendo boas experiências às gestantes que utilizaram.
Em seguida, a discussão focou nos dispositivos automatizados. Os algoritmos são rápidos o suficiente para serem considerados seguros?
Dois estudos randomizados, crossover, de 2018, demonstraram dados de um protótipo da bomba CamAPS, evidenciando um excelente controle e melhora do tempo no alvo desde 24h antes do parto a 48h pós parto, com apenas 1,5% das gestantes apresentando um episódio de hipoglicemia após o parto.
A seguir, a palestrante mostrou dados do estudo AiDAPT, que evidenciou um aumento em 10% no tempo no alvo (TIR) durante a gestação após o uso de um dispositivo em alça fechada da CamAPS como principal resultado. Numa extensão do estudo para os 3 primeiros meses do parto, houve redução de 0,8% no tempo abaixo 70 mg/dL com o uso do dispositivo comparado ao cuidado padrão. Os dados intraparto ainda não foram publicados
Outra evidência acerca do assunto vem do CRISTAL trial. publicado em 2024, que avaliou o uso da minimed 780G, com ajustes da meta, atingindo melhor TIR (72% vs 63%; p 0,03) no dia do parto e 4 dias pós parto. Aguardamos dados do estudo CIRCUIT, usando a bomba Control-IQ, ainda não publicados, mas cujos dados preliminares apontam também para melhor tempo no alvo também no momento periparto e menor média glicêmica nesse momento.
Conclusões
A discussão sobre alvos glicêmicos intraparto e uso de tecnologia deixa clara a necessidade de atualização das práticas hospitalares frente ao que já é realidade no manejo diário do diabetes. Embora ainda não haja consenso absoluto, a tendência é caminhar para uma maior personalização do controle glicêmico durante o parto, ajustando metas conforme o tipo de diabetes, controle gestacional prévio e condições clínicas materno-fetais.
O uso de CGM e SICI nesse contexto parece promissor, especialmente em pacientes bem adaptadas ao longo da gestação. No entanto, sua implementação requer protocolos bem estruturados, equipes treinadas e integração efetiva entre obstetrícia e endocrinologia.
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