Nesta edição de 2025 do Congresso do American College of Physicians (ACP), conhecido pela sua extensão e profundidade em temas relevantes para a prática do clínico e especialistas em subáreas, foi apresentada hoje uma das palestras mais interessantes da endocrinologia a respeito do impacto, riscos e benefícios da prescrição de hormônios bioidênticos.
Para isso, a Dra. Jewel Kling, internista especialista em cuidados da mulher e membro da Sociedade de Menopausa dos Estados Unidos (EUA), elaborou uma apresentação didática acerca do tema, que cobrimos neste artigo.
Desafio no tratamento da menopausa
A introdução da palestra foi exatamente sobre o desafio que o tratamento da menopausa representa na prática clínica. Em primeiro lugar, é preciso relembrar a definição de menopausa.
O diagnóstico é feito de forma retrospectiva, 12 meses depois da última menstruação. Ocorre em média próximo aos 52 anos de idade e, apesar dos sintomas vasomotores (SVM), ocorrerem em 75 a 85% das pacientes; mais de 70% continua sem tratamento para a condição.
Tais sintomas podem durar, em média, entre 7,5 a 10 anos após a menopausa, levando também a outras consequências, como alterações na qualidade do sono e depressão. Mais impactante ainda é saber que há uma probabilidade elevada de que as mulheres comecem a apresentar sintomas vasomotores até sete anos antes da menopausa.
Os sintomas vasomotores estão associados à piora significativa na qualidade de vida, transtornos de humor, alterações no sono, libido e até mesmo à aceleração da perda de massa óssea e risco cardiovascular. Seu tratamento pode, portanto, trazer uma melhora significativa na qualidade de vida.
E como em diversas palestras norte-americanas, a Dra. ressalta que “It pays to treat” (ou seja, tratar sintomas da menopausa é custo efetivo). Mulheres não tratadas costumam frequentar mais consultas médicas, ter menor produtividade no trabalho, mais faltas ao trabalho, seja por sintomas diretamente atribuíveis à menopausa (estima-se que, em média, três dias de faltas ao ano por mulher ocorra especificamente por sintomas diretos – ou outros). Em estudos econômicos, o impacto apenas dessas faltas pode chegar a cerca de 2 bilhões de dólares por ano. Logo, há muitos motivos para tratar os sintomas menopáusicas.
A terapia de reposição hormonal (TRH) é considerada segura, após análises do estudo WHI, parado precocemente em 2002, demonstrarem a existência de uma “janela” terapêutica, onde a prescrição da terapia baseada em estrógeno e progesterona, até os 59 anos, não apenas é segura como traz benefícios até mesmo metabólicos e em mortalidade por todas as causas.
Hoje a primeira linha de terapia é baseada no uso do Estradiol em doses baixas e Progesterona micronizada, que apresentam perfil de segurança ainda melhor, se comparados ao Estrógeno equino conjugado e Medroxiprogesterona, utilizados no WHI. Além disso, o Fezolinetant vem surgindo como opção para uso em mulheres com contraindicação à TRH. Então, por que considerar hormônios bioidênticos?
A Dra. Kling ilustra a discussão com um caso clínico, onde uma paciente feminina, 53 anos, vem apresentando sintomas vasomotores, irritabilidade, secura vaginal e dores articulares. A última menstruação foi há 14 meses, sem história pessoal de doenças cardiovasculares, tromboses e “uptodate” com seus preventivos, sem antecedente de câncer, ou seja, sem contraindicações à TRH e com sintomas onde de fato a terapia seria indicada. Sua amiga usa hormônios bioidênticos. A pergunta da paciente é: “Posso os utilizar também?”
O que são os hormônios bioidênticos?
Os hormônios bioidênticos são definidos como quimicamente idênticos aos hormônios produzidos no organismo. Não há nada mágico – apesar do nome sugerir que, de certa forma, tais medicações são mais “naturais” e, portanto, mais seguras. A Dra. esclarece que o termo utilizado não passa de uma grande jogada de marketing, já que são substâncias químicas que também são, em sua maioria, sintéticas e manufaturadas.
Existem diversas opções disponíveis nos EUA. A única aprovada pelo FDA, contudo, é uma formulação de estradiol. Outras formas como estrona, estriol e combinações como Biest (estriol e estradiol) ou Triest (estriol, estradiol e estrona), progesterona, testosterona e DHEA (que comumente é comprada diretamente nas farmácias) bioidênticas não são atualmente aprovados pelo FDA.
A preocupação com relação aos bioidênticos é algo básico na medicina: não há grandes estudos de segurança na maioria e, pior, há preocupações sobre a sua procedência, uma vez que grande parte dos bioidênticos utilizados são manipulados e não industrializados, carecendo de qualquer certificação ou controle de quantidade ou qualidade.
Se tais medicações são tão sem sentido, de onde veio a ideia do uso dos hormônios bioidênticos?
Em 2002, o NIH parou precocemente o estudo WHI, previamente mencionado, devido a preocupações acerca do aumento no risco de câncer de mama, doença arterial coronariana, AVC e tromboembolismo pulmonar. O objetivo inicial do estudo, que foi um ensaio clínico randomizado gigante (cerca de 161 mulheres), era avaliar o risco de doença cardiovascular. Porém o desenho do estudo é alvo de críticas generalizadas, uma vez que as mulheres randomizadas tinham entre 50 e 79 anos, com média de idade de 62 anos, mais de 10 anos após a menopausa, recebendo a prescrição dos estrógenos equinos conjugados (EEC 0,625 mg) + medroxiprogesterona (MPA 2,5 mg) se tivessem útero. Como mencionado previamente, quando analisado de acordo com a faixa etária, havia muitas diferenças na incidência de desfechos, gerando a famosa “janela de oportunidade” para início da TRH entre os 50 e 59 anos.
No entanto, logo após o estudo, antes das análises que levaram às recomendações atuais, o WHI colocou os hormônios bioidênticos como opções possivelmente associadas a menores riscos, visto que no estudo havia sido utilizado EEC e MPA.
Com isso, e com uma pitada de contribuição da mídia leiga, passamos a levar em consideração ponderações de mais de 20 anos atrás como verdades, sem estudos que embasassem de fato o seu uso ou determinando exatamente qual é a dose, formulação e posologia segura.
A palestrante ainda destaca o papel da terminologia confusa e enganadora na sua disseminação, levando a uma predileção por tais formulações em pacientes que desejam evitar o uso de medicações ou que tem medo dos riscos e assumem que um bioidêntico possa ser menos perigoso.
Logo, o segredo é a demonstração de eficácia e segurança. Nos EUA, apenas o estradiol tem uma formulação bioidêntica aprovada para uso.
Outros usos: suplementos tireoidianos e adrenais
Com relação à tireoide, existem diversas opções nos EUA e que começam a ressoar em nosso país. A Dra. aborda mais brevemente o uso de extratos de hormônios tireoidianos dissecados, normalmente advindos de porcos ou bovinos, pulverizados e quimicamente processados depois. O uso de tais formulações é propagado por falácias como a síndrome do T3 baixo ou ponderações infundadas sobre a insuficiência da terapia com T4.
Tanto a Endocrine Society (ES) como a American Association for Clinical Endocrinologists (AACE) recomenda contra o uso de tais componentes, visto que a quantidade de hormônio é variável, havendo uma dificuldade adicional no manejo, sem benefícios adicionais.
A monoterapia com T4 é adequada? Sim. No momento não há evidências que suportem com segurança e superioridade o uso de outras terapias além do T4. Se sintomas inespecíficos ainda são persistentes mesmo com o controle do TSH, devemos avaliar outras causas para sua condição.
Quanto aos bioidênticos adrenais, o foco acaba sendo outra síndrome pseudoendócrina, a “fadiga adrenal”, na qual existiria um estresse que levaria a uma elevação subclínica de cortisol, mas incapaz de ser detectada clinicamente. Para tratamento dessa condição, diversos complexos vitamínicos acabam sendo recomendados, como complexo B, magnésio, vitamina C, D e fitoterápicos. Contudo, sobretudo em manipulados, é fundamental atentarmos à presença de hormônios na prescrição.
A Dra. lembra ainda que os gastos com suplementos “over the counter” (aqueles que os pacientes podem comprar sem prescrição médica) excedem 20 bilhões de dólares porano nos EUA.
Há algum uso para testes hormonais salivares?
Para fechar a palestra, a Dra. Kling abordou ainda o uso de testes hormonais salivares, focados na análise de esteroides sexuais. Categoricamente, a resposta é “não, não há”.
Em primeiro lugar, os testes para esteroides na saliva carecem de acurácia. Esteroides como estradiol e progesterona são ligados a proteínas carreadoras séricas e naturalmente os níveis salivares são muito baixos, não sendo um teste adequado para sua avaliação.
Apesar de ainda não ser tão comum no Brasil, o uso desses métodos discutíveis tem se propagado nos EUA, comumente realizados diretamente pelos pacientes sem indicação ou prescrição médica para tanto ou até mesmo em clínicas de intenção duvidosa a fim de conseguir vender sua prescrição.
Leia mais: ACP 2025: Síncope – Informações atuais sobre avaliação e manejo
Conclusão
A palestra da Dra. Kling foi importante para esclarecer o que são os hormônios bioidênticos de fato, a sua falta de padronização, sobretudo nos manipulados. É importante atentar que seu uso não deve ser indicado de forma generalizada, visto a inexistência de demonstrações de segurança e superioridade na vasta maioria dos casos.
Continue atento ao Portal Afya e às notícias sobre os principais temas apresentados no ACP 2025 em endocrinologia e outras áreas da clínica médica.
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