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Endocrinologia30 dezembro 2025

Abordando um paciente com obesidade e testosterona baixa

Confira o que trouxe o artigo "Approach to the Patient: Low Testosterone Concentrations in Men With Obesity", publicado no JCEM.

Entre os inúmeros efeitos metabólicos e hormonais da obesidade, poucos geram tanta confusão clínica quanto a associação entre o excesso de peso e a redução dos níveis séricos de testosterona. Popularmente, é comum observam os pacientes que acreditam que o hipogonadismo é a causa da obesidade. Paradoxalmente, na endocrinologia, a relação sempre foi compreendida da forma oposta, entendendo, claro, que o hipogonadismo pode contribuir para a perpetuação do excesso de adiposidade e piora metabólica. Entretanto, a compreensão atual é ainda mais complexa, uma vez que há necessidade de compreender a presença ou não de sintomas associados ao hipogonadismo, níveis de SHBG, etc. 

Nesse contexto, foi publicado recentemente no Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism (JCEM, 2025) o artigo “Approach to the Patient: Low Testosterone Concentrations in Men With Obesity”, publicado por Muir, Wittert e Handelsman. Os autores argumentam que, na imensa maioria dos casos, a queda da testosterona observada em homens obesos não reflete um hipogonadismo orgânico, mas sim um estado funcional e reversível, um marcador do impacto metabólico sistêmico da obesidade. Esse conceito é fundamental para que o endocrinologista estabeleça diagnósticos precisos e adote abordagens adequadas, selecionando os pacientes que vão se beneficiar das melhores abordagens, seja a reposição hormonal, seja o tratamento focado apenas na obesidade ou ainda, o uso de SERMs. 

Métodos

O artigo é uma revisão que parte de um caso clínico real, que ilustra esse dilema diário de consultório. Um homem de 37 anos, com obesidade grau II (IMC 36 kg/m²), queixava-se de fadiga, libido reduzida, disfunção erétil e dificuldade para emagrecer. Apresentava ainda apneia obstrutiva do sono e hipertensão leve. Após uma busca espontânea por “testosterona baixa” na internet, solicitou a dosagem ao clínico e obteve um valor de 147 ng/dL (testosterona total), considerado abaixo do limite inferior de referência. A suspeita inicial foi de hipogonadismo, e ele foi encaminhado para endocrinologia com expectativa de iniciar a reposição hormonal. 

TESTOSTERONA TOTAL BAIXA, PORÉM TESTOSTERONA LIVRE NORMAL 

A avaliação detalhada, porém, revelou que o paciente apresentava, além da redução da testosterona total, o seguinte perfil:  

– SHBG diminuída; 

– LH e FSH normais; 

– Testículos de volume adequado (25 mL); 

– Ausência de sinais ou sintomas de insuficiência androgênica orgânica. 

Em outras palavras, um eixo hipotálamo-hipófise-gonadal íntegro. A baixa testosterona total, nesse contexto, resultava da redução da SHBG, fenômeno metabólico típico da obesidade e mediado por hiperinsulinemia, dislipidemia e esteatose hepática. 

Resultados

O tratamento foi centrado no manejo do peso e das comorbidades. O paciente iniciou reeducação alimentar, acompanhamento multiprofissional e semaglutida 2,4 mg/semana. Após 12 meses, havia perdido 24 kg (de 118 para 94 kg, IMC 28,7 kg/m²). Os resultados foram bem significativos, uma vez que a SHBG normalizou, a testosterona total aumentou para 467 ng/dL, a HbA1c caiu de 6,2% para 5,4%, e as transaminases reduziram de forma marcante. Tudo isso sem reposição hormonal. 

Causas de testosterona baixa em pacientes com obesidade 

Esse caso clínico serve como ponto de partida para discutir os mecanismos fisiopatológicos que podem levar à redução da testosterona total em indivíduos com obesidade. O artigo demonstra que a obesidade não provoca diretamente uma lesão estrutural do eixo gonadal.  

Frente à redução dos níveis de testosterona em indivíduos com obesidade, podemos estar em frente a algumas situações:  

  • Testosterona total reduzida apenas devido à SHBG reduzida, situação que não gera sintomas ou consequências e que é revertida uma vez que os níveis se normalizam;  

 

  • MOSH*: O hipogonadismo secundário à obesidade masculina, onde de fato, as alterações metabólicas promovem alterações multifatoriais que levam a uma redução, na maioria das vezes reversível, da produção de testosterona, sobretudo pela redução da pulsatilidade do GnRH. Mesmo em indivíduos com obesidade grave, nas quais se observam leves reduções da amplitude dos pulsos de LH, o eixo continua responsivo a longo prazo, normalizando na grande maioria das vezes após a perda de peso. Assim, o quadro deve ser entendido como uma síndrome metabólica com expressão hormonal, e não como hipogonadismo verdadeiro. 

 

  • Hipogonadismo verdadeiro/orgânico: Situação onde de fato há um diferencial promovendo hipogonadismo em um indivíduo com obesidade. É fundamental avaliar e descartar causas orgânicas e diferenciais para o hipogonadismo. 

 

*O artigo original discutido aqui não aborda diretamente este diferencial, descrito em literatura, e foca no quadro de testosterona total reduzida devido à redução dos níveis de SHBG, o pseudo-hipogonadismo da obesidade. 

Além disso, os autores revisam a influência das comorbidades associadas: diabetes tipo 2, apneia obstrutiva do sono, DHEM (esteatose hepática metabólica) e síndrome metabólica. Em todos esses cenários, há uma redução adicional e discreta da testosterona total (em torno de 2–3 nmol/L), porém sem quebra da integridade gonadal. O tratamento dessas condições, especialmente com redução ponderal significativa, reverte o quadro. 

Um ponto importante levantado pelos autores é a crítica à dosagem e interpretação da testosterona livre. Apesar de amplamente utilizada, ela carece de padronização analítica, baseando-se em cálculos teóricos a partir da testosterona total e da SHBG. Além disso, há uma escassez de ensaios clínicos padronizados e validados que a utilizam como marcador. Em muitos casos, cria mais ruído do que clareza diagnóstica. Para a avaliação clínica, o mais importante é o conjunto de achados: testosterona e SHBG proporcionalmente reduzidas, gonadotrofinas normais e testículos preservados, combinação que confirma o estado eugonadal. 

Na abordagem prática, o artigo reforça que a avaliação deve sempre incluir contexto clínico e reavaliação laboratorial. A testosterona deve ser medida pela manhã, em jejum e após sono adequado, sendo repetida se estiver baixa, já que até 30% dos resultados normalizam espontaneamente. Quando necessário, investigar causas coincidentes (Klinefelter, prolactinoma, hemocromatose, uso de anabolizantes, como mencionamos anteriormente. 

Por fim, os autores exploram de forma contundente os riscos da reposição de testosterona em homens obesos sem hipogonadismo orgânico. Além de infertilidade, policitemia e risco trombótico, o risco da dependência androgênica iatrogênica. O uso exógeno de testosterona suprime o eixo endógeno, levando a sintomas graves de abstinência após a suspensão e, frequentemente, à retomada do uso, um ciclo vicioso e de difícil resolução. 

Interpretação e fisiologia

O ponto principal deste artigo está na ilustração de um caso clínico idealizado para resgatar a fisiologia e lembrar que a testosterona não é um marcador isolado, mas parte de um sistema dinâmico e adaptativo. Em situações de sobrecarga metabólica, a SHBG pode se reduzir e, com isso, a testosterona total, como um reflexo do estado inflamatório e de resistência insulínica. Ao se corrigir o ambiente metabólico, o eixo se restabelece. 

Essa compreensão ajuda a explicar a conduta tomada no caso, que deve ser o padrão. Diversas metanálises demonstram que dieta, exercício, cirurgia bariátrica e até terapias farmacológicas antiobesidade elevam progressivamente a testosterona de forma proporcional à perda de peso. O estudo também levanta uma hipótese interessante: com o uso cada vez mais disseminado de agonistas de GLP-1 e de fármacos multi-incretínicos (como tirzepatida), talvez se observe, nos próximos anos, uma melhora significativa do “perfil androgênico metabólico” de homens obesos, um efeito ainda a ser confirmado em ensaios clínicos. 

Conclusão e mensagem prática

Esta revisão baseada em caso clínico do JCEM traz uma mensagem relevante tanto para nós endocrinologistas, como para os demais médicos e também para os pacientes: testosterona total baixa não é sinônimo de hipogonadismo em pacientes com obesidade. Em homens com obesidade, a queda do hormônio pode ser apenas um reflexo da disfunção metabólica, não levando a consequências clínicas e não configurando uma indicação para reposição. 

Na prática clínica, isso significa que o endocrinologista deve interpretar o resultado laboratorial com cautela, contextualizar o paciente, entender se há presença ou não de sintomas e sinais compatíveis com hipogonadismo e evitar medicalizar um achado reversível. O foco do tratamento deve ser o manejo global da obesidade e de suas comorbidades, com ênfase em perda ponderal sustentada. A reposição androgênica só tem lugar quando há comprovação inequívoca de hipogonadismo. 

No cenário brasileiro, marcado pelo crescimento da obesidade e pela banalização do uso de anabolizantes e terapias hormonais “off label”, essa reflexão é especialmente necessária. A endocrinologia precisa reafirmar a ciência sobre a opinião leiga. 

Autoria

Foto de Luiz Fernando Fonseca Vieira

Luiz Fernando Fonseca Vieira

Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) - Faculdade de Medicina de Botucatu

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Referências bibliográficas

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