Estimativas mundiais se aproximam de 3 milhões de pacientes em hemodiálise atualmente. A mortalidade por insuficiência renal continua inaceitavelmente alta, com estimativas recentes de aproximadamente 18% ao ano — maior do que a mortalidade observada entre pacientes com insuficiência cardíaca, diabetes ou muitos tipos de câncer. Inflamação, hipertensão, hipervolemia e distúrbios metabólicos que acompanham a doença renal também resultam em um risco significativamente maior de doença cardiovascular. De fato, aproximadamente 40 a 50% dos pacientes que recebem hemodiálise morrem por causas cardiovasculares.
Nesse contexto, o estudo PISCES avaliou o efeito da suplementação diária de ácidos graxos ômega-3 na forma de 4 gramas diários de óleo de peixe — especificamente 1,6 g de EPA e 0,8 g de DHA — na redução de eventos cardiovasculares em pacientes submetidos à hemodiálise. Apesar de décadas de pesquisa, poucos tratamentos demonstraram eficácia consistente na prevenção de desfechos cardiovasculares nessa população, o que torna a investigação particularmente relevante. O ensaio foi multicêntrico, duplo-cego e randomizado, envolvendo 1228 adultos em hemodiálise no Canadá e na Austrália, acompanhados por até 3,5 anos.
Os resultados mostraram uma redução expressiva na taxa de eventos cardiovasculares graves entre os indivíduos que receberam o suplemento de ômega-3. A taxa do desfecho primário foi de 0,31 versus 0,61 eventos por 1000 pacientes-dia nos grupos ômega-3 e placebo, respectivamente, o que corresponde a uma redução de 43% no risco. A intervenção também reduziu de forma consistente os componentes individuais do desfecho primário, incluindo infarto, AVC, morte cardíaca e amputações relacionadas à doença vascular periférica. Esses efeitos foram observados tanto em participantes com doença cardiovascular prévia quanto naqueles sem histórico, indicando benefício amplo.
Os desfechos secundários reforçaram essa tendência favorável. Embora a mortalidade por todas as causas não tenha diminuído de forma significativa, houve redução relevante na combinação entre primeiro evento cardiovascular e morte por qualquer causa, com hazard ratio de 0,73. A análise de recorrência de eventos mostrou que participantes do grupo ômega-3 apresentaram menos episódios repetidos ao longo do seguimento. A demonstração de aumento nas concentrações plasmáticas de EPA após três meses confirmou adesão adequada e eficácia biológica da intervenção em modificar o perfil lipídico circulante.
Um aspecto metodológico crucial foi a escolha do óleo de milho como placebo. Esse óleo contém predominantemente ácido linoleico e vitamina E, substâncias que tendem a ter efeito neutro ou mesmo discreta ação anti-inflamatória, não sendo consideradas prejudiciais ao sistema cardiovascular (diferenteente do que foi observado com o óleo mineral no estudo REDUCE-IT). Isso reduz a probabilidade de que o placebo tenha amplificado artificialmente os benefícios do tratamento. O fato de os níveis de EPA e DHA permanecerem estáveis no grupo placebo também indica que não houve contaminação por uso externo de suplementos de ômega-3.
O estudo ganha ainda mais relevância quando se considera que diversas intervenções cardioprotetoras consagradas em outras populações — como estatinas, espironolactona e alguns tratamentos dirigidos ao metabolismo mineral — demonstraram benefícios limitados ou inexistentes em pacientes em hemodiálise. Diante dessa realidade, observar uma redução tão significativa nos eventos cardiovasculares representa um avanço surpreendente e potencialmente transformador, ainda que necessite de confirmação independente para fundamentar mudanças amplas na prática clínica.
Em síntese, a suplementação diária com ômega-3 em dose elevada mostrou-se capaz de reduzir substancialmente eventos cardiovasculares em pacientes em hemodiálise, uma população historicamente difícil de beneficiar com intervenções farmacológicas. Embora persistam questões sobre mecanismos, generalização e necessidade de replicação dos resultados, o estudo PISCES representa um marco importante ao demonstrar que alterações simples na terapia nutricional podem ter impacto clínico significativo em um grupo de altíssimo risco.
Autoria

Luciano de França Albuquerque
Graduação em medicina pela Universidade Federal do Vale do São Francisco • Residência em Clínica Médica pelo Hospital Regional de Juazeiro – BA • Residência em Endocrinologia e Metabologia pelo Hospital das Clínicas da UFPE • Título de Especialista pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia • Médico Endocrinologista no Hospital Esperança Recife e Hospital Eduardo Campos da Pessoa Idosa
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