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Clínica Médica22 março 2025

Síndromes pseudo-endócrinas: como reconhecer e manejar

Revisão abordou os principais testes diagnósticos empregados, as intervenções terapêuticas frequentemente utilizadas e os impactos negativos das síndromes pseudo-endócrinas

Nos últimos anos, um número crescente de condições endócrinas sem comprovação científica tem ganhado notoriedade, impulsionado pela disseminação de informações em redes sociais e pela busca de explicações alternativas para sintomas inespecíficos, como fadiga, ganho de peso e distúrbios do humor. Esses chamados distúrbios pseudoendócrinos não são reconhecidos pelas principais sociedades médicas e frequentemente resultam em exames laboratoriais desnecessários e tratamentos potencialmente prejudiciais. 

As condições mais frequentemente relatadas incluem a “fadiga adrenal”, a “síndrome de Wilson”, a “síndrome do T3 reverso”, o “hipogonadismo masculino pseudoendócrino” (“Low T”). Além dessas, condições como pseudo-Cushing e o pseudo-feocromocitoma podem ser de difícil compreensão para os pacientes quando se deparam com resultados de exames laboratoriais com alterações leves mas que não acarretam impacto direto em sua saúde. 

Tais síndromes são baseadas em interpretações errôneas da fisiologia endócrina ou em extrapolações inadequadas de estudos laboratoriais para a prática clínica e, por sua apresentação extremamente inespecífica, se tornam alvos constantes de pesquisas por pacientes que acabam por encontrar nessas pseudo-condições um alento que justifique seus sintomas, ainda que de forma leiga e errônea. 

Esse fenômeno não é isolado em nosso país e vem acontecendo em todo o mundo, sobretudo nos Estados Unidos (EUA). Devido à importância crescente do tema, a Endocrine Society, sociedade de endocrinologia dos EUA publicou recentemente uma revisão narrativa crítica acerca dessas condições, abordando os principais testes diagnósticos empregados, as intervenções terapêuticas frequentemente utilizadas e os impactos negativos dessas práticas. Além disso, os autores discutem estratégias de manejo para médicos que lidam com pacientes convencidos de que possuem essas síndromes, reforçando a necessidade de abordagem empática e embasada em evidências. Por sua importância e potencial impacto na prática clínica, trazemos a revisão para discussão no portal. 

Métodos do estudo 

O estudo consistiu em uma revisão narrativa de literatura, utilizando publicações indexadas no PubMed, MEDLINE e Cochrane Database, bem como diretrizes de sociedades científicas internacionais, incluindo a Endocrine Society, American Thyroid Association (ATA) e European Society of Endocrinology. Foram incluídos artigos que descrevem a origem dessas síndromes, os métodos diagnósticos empregados e os desfechos clínicos do uso de terapias baseadas nesses diagnósticos questionáveis. A análise também explorou o impacto dessas condições no uso inadequado de recursos médicos, como exames laboratoriais sem validação e tratamentos potencialmente nocivos. 

Os tópicos analisados incluíram a definição das principais condições pseudoendócrinas e os conceitos fisiológicos equivocados que as sustentam; os principais exames laboratoriais utilizados incorretamente e suas limitações; tratamentos mais comumente recomendados e seus riscos e possíveis consequências médicas e psicológicas do diagnóstico errôneo, além das estratégias possíveis para abordagem desses pacientes. 

Principais distúrbios pseudoendócrinos 

  • “Fadiga Adrenal”: Um dos principais 

A fadiga adrenal é descrita como uma condição em que o estresse crônico levaria à exaustão do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA), resultando em baixos níveis de cortisol e sintomas como cansaço persistente, dificuldades cognitivas e baixa resistência a infecções. No entanto, não há qualquer evidência de que o estresse cotidiano cause insuficiência adrenal funcional, e nenhum estudo demonstrou níveis consistentemente baixos de cortisol em indivíduos “diagnosticados” com essa condição. 

Diversos trials que avaliaram cortisol plasmático, ACTH e testes de estímulo com cosintropina (cortrosina) não encontraram anormalidades bioquímicas nesses pacientes. A Endocrine Society e outras entidades médicas rejeitam o conceito de fadiga adrenal, enfatizando que a insuficiência adrenal verdadeira (primária ou secundária) deve ser diagnosticada com base em critérios rigorosos, incluindo testes dinâmicos quando necessários. 

Os pacientes frequentemente são tratados com doses não supervisionadas de corticosteroides, o que pode levar aí sim de fato a supressão do eixo HHA, osteoporose, hipertensão e resistência insulínica, dentre outras consequências do uso crônico de glicocorticoides.  

  • “Síndrome de Wilson e T3 Reverso”: Uma das queridinhas da pseudociência 

A síndrome de Wilson, que não deve ser confundida com a doença de Wilson, propõe que um suposto defeito na conversão periférica de T4 em T3 cause sintomas de hipotireoidismo, mesmo com exames normais. Os defensores dessa teoria utilizam temperatura axilar como critério diagnóstico e prescrevem altas doses de liotironina (T3). 

A premissa central da síndrome de Wilson é amplamente refutada, pois o T3 é regulado por mecanismos homeostáticos robustos e a conversão de T4 em T3 ocorre de forma adaptativa em resposta a condições fisiológicas e metabólicas. Além disso, a medição de T3 reverso (RT3), frequentemente utilizada nesses pacientes, não tem validade clínica na avaliação da função tireoidiana. Pela “plausibilidade biológica”, o argumento é utilizado frequentemente por pacientes e de forma ainda mais inconsequente por médicos, ainda que a evidência sobre o assunto aponte para a inexistência da condição e para a ineficácia da associação do T3 ao tratamento do hipotireoidismo. Além disso, o uso indiscriminado de T3 pode resultar em taquicardia, arritmias, osteopenia e exacerbação de quadros psiquiátricos. 

  • “Testosterona Baixa: O hipogonadismo masculino pseudoendócrino (ou, do inglês, “Low T”) 

O termo “Low T” tem sido amplamente promovido por clínicas especializadas nos EUA e a tendência vem sendo seguida no Brasil. A sugestão é que a queda fisiológica da testosterona com a idade deve ser tratada agressivamente, mesmo sem hipogonadismo verdadeiro. Muitos pacientes iniciam terapia de reposição sem avaliação criteriosa, o que pode levar a supressão do eixo hipotálamo-hipófise-gonadal, infertilidade e atrofia testicular. 

Diretrizes da Endocrine Society recomendam que o diagnóstico de hipogonadismo masculino seja baseado em testosterona total < 264 ng/dL (< 300 ng/dL de acordo com outras sociedades, como a SBEM) em pelo menos duas amostras matinais, além da presença de sintomas específicos. A terapia não deve ser indicada apenas com base em fadiga inespecífica. 

Confira também: Distúrbios pseudo-endócrinos: quais são eles? 

Resultados 

Condições como o pseudo-Cushing e pseudo feocromocitoma exemplificam situações em que há a necessidade de critério na solicitação de exames e capacidade de interpretação por quem os solicitou. São condições reais de alterações laboratoriais, mas induzidas por quadros de base, ou seja, que não requerem tratamento ou investigação diagnóstica além do manejo adequado do quadro de base. 

O pseudo-Cushing ocorre em condições como depressão, alcoolismo, obesidade severa e diabetes descompensado, que podem levar a elevação transitória do cortisol e testes de rastreio falso-positivos para síndrome de Cushing. A diferenciação pode ser feita pelo teste de dexametasona ou pela normalização do cortisol com o tratamento da condição subjacente. Já o pseudo-feocromocitoma se refere a quadros de hipertensão paroxística e palpitações que resultam em aumento transitório de catecolaminas sem a presença de um tumor adrenal secretor. Pacientes com ansiedade severa ou síndrome do pânico frequentemente apresentam elevação de metanefrinas, mas exames confirmatórios como a ressonância magnética adrenal são normais. 

Considerações e mensagem prática 

O crescente número de pacientes buscando tratamento para condições pseudo-endócrinas representa um desafio significativo para os endocrinologistas e clínicos gerais. Esta revisão reforça a necessidade de uma abordagem baseada em evidências para evitar o uso de exames laboratoriais sem validade diagnóstica e terapias potencialmente prejudiciais.  

A prática médica deve enfatizar uma escuta ativa e empatia ao lidar com pacientes convencidos de que possuem essas condições e os oferecer uma educação baseada em ciência, explicando porque determinados exames ou tratamentos não são apropriados. É fundamental que o médico assistente seja capaz de fazer uma diferenciação criteriosa entre sintomas funcionais e doenças endócrinas reais, evitando a medicalização desnecessária e mais, encontrando o real problema desses pacientes, que muitas vezes é negligenciado enquanto pacientes e médicos persistem numa busca irreal para encontrar o “hormônio que está alterado”. 

No Brasil há uma disseminação crescente de desinformação, via redes sociais e internet. É fundamental fortalecer campanhas educacionais sobre endocrinologia baseada em evidências e fornecer acesso à saúde de qualidade e reforçar uma vez mais o “primum non nocere”. 

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Referências bibliográficas

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