No cotidiano das enfermarias e terapias intensivas, especialmente nas internações destinadas ao tratamento de pacientes graves e complexos, é comum o surgimento de dúvidas, desentendimentos e questionamentos dos pacientes e seus familiares em relação às condutas traçadas pela equipe assistente.
Em primeiro lugar, precisamos legitimar as demandas trazidas por aqueles que assistimos, que, ao final das contas, querem, na maioria das vezes, resposta clara a algumas questões muito pertinentes, entre as quais:
- O melhor tratamento disponível, considerando a realidade local, está sendo dedicado a mim ou ao meu familiar?
- Por que esses sintomas, que incomodam tanto, persistem? Eles estão sendo negligenciados?
- As informações que estamos recebendo são compatíveis com a realidade?
- Qual o real prognóstico?
- Há chances de óbito em um curto prazo?
- Vocês estão vislumbrando a possibilidade de alta hospitalar?
- Caso a alta hospitalar aconteça, como vamos lidar com as tantas necessidades e tarefas que surgirão?
Na correria da profissão, muitas vezes, pecamos por não oferecer um momento propício para uma conversa franca, na cadência correta e com o tempo suficiente para alcançarmos as reais demandas daqueles que padecem: os nossos pacientes e os seus, quase sempre sobrecarregados, cuidadores.
Recentemente, na prática da medicina interna no hospital em que desempenho a função de preceptor, testemunhei a restauração da relação entre um familiar, extremamente desconfiado, e um residente médico, obstinado em oferecer o melhor cuidado, mas distanciados por incongruências de comunicação, a partir de uma reunião familiar extremamente produtiva e multiprofissional, e que me motivou a revistar essa sofisticada e eficiente ferramenta, desde que bem planejada e executada.
Leia mais: Série Comunicação Médica: como realizar uma reunião familiar
Os passos para se preparar para uma reunião com os familiares
- Antes de mais nada, é necessário estabelecer os propósitos da reunião, por meio da elaboração de uma pauta;
- Deve-se realizar o agendamento da reunião com antecedência, permitindo a participação da equipe multiprofissional (médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, conforme as demandas de cada caso e com o alinhamento prévio dos objetivos, viabilizando uma exposição única e coesa, fomentadora de segurança para os assistidos) e dos familiares, bem como dos próprios pacientes, respeitando-se o princípio da autonomia, desde que aptos, desejosos e com os pré-requisitos de segurança assegurados. Em alguns casos pontuais as reuniões virtuais podem ser úteis.
- Escolher um local silencioso, com privacidade e confortável para o acolhimento, disponibilizando água, lenços e um tempo de não mais do que uma hora. As cadeiras devem estar dispostas de forma a permitir o contato visual. Recomenda-se equilibrar, em número, a equipe assistente e os familiares, para evitar um efeito de intimidação. A sinalização da ocorrência da reunião, afixada do lado de fora da porta, pode evitar interrupções desnecessárias.
- A história clínica do paciente, bem como a estrutura de organização familiar, devem estar muito bem compreendidas pela equipe assistente;
- O entendimento do sujeito internado, no que se refere a sua personalidade, valores, preferências e espiritualidade, é fundamental para a individualização da abordagem. Na impossibilidade de participação do próprio indivíduo, algumas perguntas podem ser úteis:
- “Quais são as coisas mais importantes para ele?”
- “Como ele gostaria de ser cuidado nesse momento?”
- “Ele gostaria de ser mantido vivo, sem perspectivas de melhora, às custas de aparelhos”?
6. O prognóstico mais provável deve ser informado: óbito em curto ou médio prazo? Melhora clínica, mas com percalços Desospitalização? É importante ressaltar que os pacientes trazem as suas particularidades: uns desejam saber a fundo a sua condição; outros, por mais que percebam a gravidade, não querem que o médico detalhe essas questões. Para não ultrapassar o limiar de cada paciente e familiar, deve-se atentar a linguagem verbal e, sobretudo, a não verbal, e as entrelinhas têm muito a dizer!
7. As opções terapêuticas pertinentes devem ser explicadas, mas abstendo-se, com veemência, da “estratégia do cardápio”.
Aqui, é importante salientar que há, em geral, uma grande, e esperada, assimetria técnica na relação entre os profissionais de saúde e o paciente e seus familiares.
Dessa forma, é nosso dever ético expor as condutas e planos de cuidado mais razoáveis sob o ponto de vista técnico, sempre em linguagem simples e evitando dicotomias inapropriadas, como:
“Querem que intube, dialise, use drogas vasoativas ou reanime”?
O diálogo não deve ser pautado naquilo que não vamos fazer, e sim naqueles cuidados que julgamos dignos, pertinentes e assertivos para os melhores desfechos, sejam eles curativos ou exclusivamente dedicados ao alívio de sintomas ou provimento de conforto nas fases finais de vida.
Alguns pacientes e familiares perguntarão, diretamente, sobre medidas específicas, como as anteriormente citadas, e devemos nos posicionar com objetividade e empatia nessas situações. Deve-se diferenciar, quando apropriado, a ortotanásia (permitir morrer no tempo correto), umas das metas do cuidado paliativo, da distanásia (prolongamento do sofrimento com medidas fúteis) e da eutanásia (indução do óbito por meio de intervenções específicas), sendo a última considerada ilegal em nosso meio.
Essas considerações têm, em outros aspectos, o objetivo de evitar a sensação de culpa dos familiares sobre a estratégia de permitir a morte no tempo correto. Em síntese, os médicos devem reconhecer, quando pertinente, a indicação do cuidado paliativo, e então explicar à família sobre a sua adequação, evitando a transferência de responsabilidades, sem ferir os princípios de autonomia.
- Diante da perspectiva de desospitalização, o destino daquele paciente deve ser definido: Voltará ao seu domicílio de origem? Se mudará para a residência do cuidador? Haverá a transferência para um hospital de cuidados prolongados ou instituição de longa permanência?
Dicas sobre como estruturar a reunião
- Agradecimento do condutor da reunião aos familiares pela presença;
- Explicação dos motivos da convocação aos familiares;
- Solicitação que todos se apresentem e compartilhamento de uma lista da presença de todos os envolvidos, a ser registrada, em segundo momento, ao prontuário;
- Espaço de fala livre dos pacientes e familiares, sinalizado por perguntas abertas (“Qual a sua compreensão sobre a condição atual de saúde do indivíduo internado”?), em que as percepções (corretas ou equivocadas), demandas, questionamentos, desentendimentos e preocupações deverão ser elucidados;
- Síntese do quadro clínico pelo condutor, esclarecendo sobre os eventuais equívocos de percepção levantados, valendo-se sempre de linguagem simples e desapegada do jargão técnico;
- Diante da necessidade de dar más notícias, uma estratégia preliminar interessante é pedir autorização para seguir adiante para tocar em temas delicados e perceber a necessidade de pausas respeitosas para que a informação possa ser assimilada.
As falsas esperanças devem ser evitadas, e falas como “gostaríamos que fosse diferente” ou “estamos preocupamos com a piora do quadro” podem realinhar, com certa suavidade, as expectativas. Uma dica, para quem está iniciando na profissão, é a adoção do protocolo SPIKES, com o cuidado de evitar a “robotização” da abordagem.
- O surgimento de emoções deve ser explorado com nomeação, entendimento, respeito e apoio, como bem lembrado pelo mneumônico NURSE. Na sequência, reflexões podem ser implementadas para a validação e significação dessas emoções. Um exemplo relevante: “entendemos o motivo da senhora estar com raiva sobre esse fato em específico”.
- O plano de cuidados é um dos produtos da reunião familiar. Deve-se ter clareza em relação às propostas terapêuticas, bem como o papel da equipe assistente multiprofissional. Independentemente de quaisquer perspectivas prognósticas, deve-se enfatizar que o paciente não será abandonado e que haverá um sério compromisso de mantê-lo confortável, minimizando os sofrimentos, sejam eles de ordem física ou psíquica, facilitando a participação e amparando também os familiares.
- O registro da reunião em prontuário, em forma de ata, com destaque dos principais pontos abordados e dos seus participantes, traz um importante amparo médico-legal para a equipe assistente.
Conclusão e Mensagens práticas
- As reuniões familiares são ferramentas valiosas na restauração da relação médico-paciente-família em casos graves e complexos, permitindo a elaboração de um plano de cuidados individualizado e gerando importantes frutos, desde que bem planejadas e executadas.
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