Paracentese precoce faz mesmo a diferença?
As principais sociedades de hepatologia, como a AASLD e EASL, recomendam a realização de paracentese diagnóstica precoce, nas primeiras 12 a 24 horas de internação, entre os hepatopatas complicados em ascite.
A conduta é justificada pela necessidade de diagnóstico a contento da peritonite bacteriana espontânea (PBE), uma complicação que acomete entre 10 e 30% dos hepatopatas internados com ascite e que é totalmente assintomática em um terço dos casos.
O achado de ascite neutrofílica, com contagem de polimorfonucleares ≥ 250/mm³, define a PBE e permite a introdução bem embasada pda antibioticoterapia (ceftriaxona ou cefotaxima, por exemplo) e da profilaxia de síndrome hepatorrenal (SHR) com a administração endovenosa de albumina humana (1,5 g/kg no D1 e 1 kg/kg no D3).
A despeito de toda essa importância da paracentese diagnóstica, a taxa de adesão ao procedimento é baixa, sendo realizada em menos da metade dos casos. Na correria das urgências e emergências brasileiras, os números muito provavelmente devem ser ainda mais alarmantes, e frequentemente se vê a inadequada instituição de terapia antimicrobiana empírica, sem a coleta do líquido ascítico.
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De uma forma prática, a pergunta que fica é a seguinte: a parecentese diagnóstica, realizada precocemente, realmente é capaz de modificar os desfechos clinicamente relevantes entre os hepatopatas, como a mortalidade?
Uma revisão sistemática e meta-análise publicada em novembro de 2024 no periódico Gastroenterology por Azizullah Beran, hepatologista da Universidade de Indiana, buscou responder a essa questão.
A busca sistemática, realizada nas bases de dados PubMed, Embase e Web of Science até julho de 2023. Foram incluídas 7 coortes retrospectivas, selecionadas entre mais de 750 estudos e perfazendo um número próximo a 80.000 pacientes.
A pergunta PICO
A população compreendeu adultos internados com doença hepática crônica avançada complicada por ascite. A idade média dos pacientes foi de 60 anos, com predomínio do sexo masculino (66%).
A intervenção avaliada foi a realização de paracentese precoce, nas primeiras 12 a 24 horas da internação (N = 45.533 ou 57,8%), em comparação com a paracentese tardia (N = 32.211 ou 42,2%), realizada após esse período.
O desfecho primário foi a mortalidade em 30 dias, enquanto os secundários foram o tempo de internação hospitalar, evolução para injúria renal aguda (IRA) e taxa de readmissão hospitalar em 30 dias.
A análise estatística foi pautada em um modelo de efeitos aleatórios, com a realização de análise de sensibilidade para corroborar os dados com a exclusão dos estudos com maior risco de vieses.
Os principais resultados
A parecentese precoce, conforme o esperado, se associou à redução de mortalidade: 7,2% vs. 10,2% (OR 0,61, IC 95%: 0,46 a 0,86, P = 0,001); do tempo de internação hospitalar, com diferença média de -4,85 dias (IC 95%: – 6,45 a -3,2, P < 0,001); e da taxa de evolução para IRA: 23,6% vs. 35,4% (OR 0,62, IC 95%: 0,42 a 0,92, P = 0,02).
A taxa de readmissão em 30 dias, por sua vez, não diferiu significativamente entre os grupos: 28% vs. 22% (OR 1,11, IC 95%: 0,52 a 2,39, P = 0,79).
Na análise pré-determinada de subgrupos, observou-se um benefício numérico ainda mais relevante sobre a mortalidade entre os pacientes submetidos à paracentese em menos de 12 horas, ao se comparar com aquela realizada nas primeiras 24 horas.
As principais limitações dessa importante meta-análise foram as seguintes:
- A indisponibilidade de estudos controlados randomizados (RCTs) sobre o tema;
- O número limitado de estudos retrospectivos incluídos, o que impediu a análise do viés de publicação;
- A grande heterogeneidade estatística observada nos desfechos;
- E o predomínio de estudos norte-americanos, por exceção de um romeno, o que, naturalmente, limita muito a generalização dos resultados.
Outro ponto de discussão relevante:
Será que a menor mortalidade observada no grupo da parecentese precoce foi um reflexo direto da intervenção ou simplesmente sinalizadora de um cuidado de maior qualidade como um todo dedicado a esses pacientes?
Conclusão e Mensagens práticas
- A paracentese diagnóstica precoce, realizada nas primeiras 12 a 24 horas de internação hospitalar, é recomendada nos hepatopatas descompensados em ascite.
- O racional subjacente à conduta reside na identificação, em tempo hábil, da peritonite bacteriana espontânea (PBE), evento assintomático em um terço dos casos, e que demanda, além da antibioticoterapia, a administração de albumina enquanto profilaxia de síndrome hepatorrenal (SHR).
- Os dados da metanálise em questão corroboram as orientações difundidas pelas principais sociedades de hepatologia, com AASLD e EALS, a despeito importância da parecentese precoce, sob o âmbito da mortalidade em 30 dias, contraposta com a preocupante baixa adesão observada na prática cotidiana.
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