O câncer de fígado representa a terceira causa mais prevalente de mortalidade oncológica em todo o mundo, sendo o carcinoma hepatocelular (CHC) o principal representante das neoplasias hepáticas primárias.
O fator de risco mais proeminente para o seu desenvolvimento é a doença hepática crônica avançada (DHCA ou, simplesmente, “cirrose”), substrato que perfaz aproximadamente 80% de todos os casos. Logo, 1 em cada 5 pacientes acometidos por CHC não apresentam DHCA, cenário em que se destacam a infecção crônica pelo HBV, doença hepática esteatótica associada à disfunção metabólica (MASLD), etilismo, tabagismo e exposição à aflatoxina B1.
O momento atual é de redução do impacto da HBV e HCV enquanto causas de CHC, por conta dos programas de imunização em massa, em que a primeira dose da vacina da hepatite B costumeiramente é administrada ao nascimento; e as potentes e cada vez mais disponíveis terapias antivirais direcionadas ao HCV. Por outro lado, os casos de CHC relacionados à MASLD e etilismo encontram-se em ascensão, motivo pelo qual ênfase deve ser direcionada à adoção de hábitos de vida saudáveis, como reeducação alimentar e prática regular de atividade física, na mitigação dos riscos.
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Quando há indicação para rastreamento de CHC?
Destacamos abaixo os grupos de paciente de alto risco para o desenvolvimento de CHC, em que há indicação para o rastreamento com a combinação entre ultrassonografia abdominal (US) e dosagem de alfafetoproteína (AFP) a cada seis meses:
- DHCA (“cirrose”): risco de CHC ≥ 1%/ano;
- Infecção crônica pelo HBV: risco de CHC ≥ 0,2%/ano, especialmente entre homens > 40 anos e mulheres > 50 anos;
- História familiar de CHC;
- Escore PAGE-B ≥ 10 pontos (contempla idade, sexo e contagem da plaquetas).
Os programas de rastreamento reduzem a mortalidade específica por CHC (RR 0,63 – IC 95%: 0,41 a 0,98, em um RCT que envolveu quase 19.000 chineses portadores de HBV), associando-se com aumento da taxa de detecção precoce, possibilidade de tratamento curativo e melhora da sobrevida geral.
A melhor sensibilidade é alcançada com a combinação entre US e dosagem de AFP: 63%, enquanto o uso isolado do US se associa a maior especificidade. Dessa forma, apesar de recomendações dúbias de sociedades, em nosso meio, o mais consensual é a adoção do rastreio com ambas as ferramentas.
O rastreamento positivo é estabelecido pela presença de uma nova lesão hepática ≥ 1 cm identificada ao US, AFP ≥ 20 ng/mL ou valores crescentes de AFP. Nessas condições, a recomendação é prosseguir com estudo seccional de imagem trifásico, como a TC ou RM de abdome.
O rastreamento não deve ser recomendado em pacientes com expectativa de vida limitada a menos que 1 ou 2 anos ou com doença hepática descompensada inelegível para o transplante.
Os estudos por imagem podem definir o diagnóstico em cenários clínicos apropriados, como na presença de DHCA de etiologia não vascular, HBV crônica com PAGE-B ≥ 10 pontos ou histórico prévio de CHC. É sempre desejável que o laudo radiológico siga a padronização do LI-RADS, interpretado da seguinte maneira:
Como interpretar o LI-RADS? | |
LR-1 |
Lesão definitivamente benigna. |
LR-2 |
Lesão provavelmente benigna. |
LR-3 |
Probabilidade de CHC entre 20 e 40%. |
LR-4 | Probabilidade de CHC entre 60 e 70%. |
L4-5 | Probabilidade de CHC de 95%. |
Os casos suspeitos de CHC devem ser discutidos por equipes multidisciplinares, envolvendo hepatologistas, cirurgiões transplantadores e hepatobiliares, radiologistas intervencionistas, radioterapeutas e oncologistas. Essa forma estruturada de abordagem relaciona-se com redução da mortalidade (HR 0,63 – IC 95%: 0,45 a 0,88 – em dados de uma meta-análise que envolveu mais de 14.000 pacientes) e permite o refinamento das decisões sobre as melhores estratégias terapêuticas, que nos estágios iniciais incluem:
Estratégia |
Sobrevida |
Recorrência de CHC em 5 anos |
Ressecção cirúrgica |
Superior a 70% em 5 anos |
50 a 60% |
Ablação |
– |
50 a 60% |
Transplante hepático |
Mediana de 10 anos |
10% |
Os critérios de Milão versam sobre a elegibilidade para o transplante hepático e estão associados às dimensões e número de lesões: 1 lesão ≤ 5 cm ou 2 a 3 lesões ≤ 3 cm, podendo-se recorrer ao down-staging por meio de terapias locorregionais, como a quimioembolização transarterial (TACE), radioembolização transarterial (RACE) e radioterapia externa.
Conclusão e mensagens práticas
O câncer de fígado é a terceiro principal causa de mortalidade oncológica em todo o mundo, sendo que o carcinoma hepatocelular (CHC) é o principal representante das malignidades hepáticas primárias. Os programas de rastreamento devem ser direcionados às populações de alto risco: cirrose, infecção crônica pelo vírus B (PAGE-B > 10 pontos) e história familiar de CHC. O método combinado (ultrassonografia do abdome + alfafetoproteína) fornece a melhor sensibilidade.
O rastreio positivo é definido pela presença de 1 lesão hepática nova ≥ 1 cm, AFP ≥ 20 ng/mL ou em curva de ascensão. Nesses casos, deve-se prosseguir com estudos seccionais trifásicos de imagem. Os laudos radiológicos devem ser padronizados em conformidade com a classificação de LI-RADS e os casos devem ser discutidos por equipes multidisciplinares, com objetivo de traçar a melhor estratégia diagnóstica e terapêutica.
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