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Endocrinologia23 junho 2024

ADA 2024: Efeitos colaterais graves dos agonistas de GLP-1 são verdade ou mito?

Confira como foi a discussão das perspectivas baseadas nas evidências mais atuais sobre o assunto durante o congresso.

O terceiro dia do congresso da American Diabetes Association (ADA) iniciou com uma revisão a respeito das evidências sobre os possíveis efeitos colaterais graves relacionados ao uso de agonistas de GLP-1, sobretudo os que geralmente são temas de polêmicas como risco de pancreatite e câncer de pâncreas, câncer de tireoide e, mais recentemente, risco de suicídio associado à essa classe de medicações. 

Para tanto, subespecialistas de diferentes áreas trouxeram suas perspectivas baseadas nas evidências mais atuais para ilustrar os posicionamentos atuais dos principais órgãos reguladores mundiais, como o FDA (US Food and Drugs Agency) e EMA (European Medicines Agency).  

 

Pancreatite, câncer de pâncreas e patologias da vesícula biliar 

O Dr. Daniel Drucker, MD (University of Toronto) iniciou a discussão revisando sobre o possível risco de pancreatite, câncer de pâncreas, de intestino e patologias da vesícula biliar relacionados ao uso de agonistas de GLP-1.  

Essas configuram as preocupações mais antigas e controversas relacionadas ao uso de agonistas de GLP-1. Tudo começou ainda no início da investigação das incretinas, inclusive com inibidores de DPP-4, quando modelos animais demonstraram maior risco de pancreatite em roedores. Contudo, foi provado também que tais animais apresentam uma suscetibilidade muito maior a tal tipo de evento, mesmo sem a exposição à droga. O Dr. Drucker trouxe diversos dados de estudos, metanálises e revisões em humanos para elucidação.

Uma metanálise de ensaios clínicos randomizados publicada em 2020 na revista Diabetes, Obesity and Metabolism evidenciou não haver maior risco de pancreatite com o uso de agonistas de GLP-1 (RR 1,05; IC 95%; 0,78-1,41), porém detectou um possível risco aumentado nos inibidores de DPP-4 (RR 1,75; IC 95%; 1,14 – 2,70; p= 0,01).  

Quanto ao risco de câncer de pâncreas, o problema a se considerar é que se trata de um evento raro, porém também foi observado em metanálises que não há um aumento do risco. Mais interessante, ainda, foi uma coorte publicada no JAMA em 2024, que seguiu 543.595 indivíduos com diabetes, divididos entre indivíduos em uso de agonistas de GLP-1 ou insulina basal por ano, que demonstrou uma incidência significativamente menor de câncer de pâncreas naqueles que estavam em uso de agonistas de GLP-1 comparado ao uso de insulina (540 x 1125 casos/ano/10.000). 

Ainda, quanto ao risco de câncer colorretal, uma metanálise publicada no JAMA Oncology em 2024 também demonstrou até mesmo proteção naqueles em uso dos agonistas de GLP-1. 

Porém quanto aos eventos relacionados à vesícula biliar, o número de eventos como colelitíase (RR 1,27), colecistite (RR 1,36) e necessidade de colecistectomia (RR 1,70) parece de fato ser maior. O ponto positivo é que não há relação com maior risco de câncer do trato biliar, ainda que as considerações da raridade do evento sejam também aplicáveis neste cenário. Ainda assim, trata-se de um evento incomum e, portanto, a decisão do uso da medicação nesse cenário deve ser individualizada e pesando-se o risco x benefício. Curiosamente, a vesícula tem majoritariamente receptores para GLP-2 e não GLP-1, o que deixa em aberto a discussão sobre os mecanismos que levam a tal efeito, como por exemplo a possibilidade da própria perda de peso em si desempenhar um papel. 

De qualquer forma, as evidências atuais não sugerem maior risco de pancreatite ou câncer de pâncreas associado ao uso dessas medicações. 

 

Risco de suicídio  

 Em seguida, o Dr. John Gamble, PhD, seguiu discutindo sobre o risco de suicídio relacionado aos agonistas de GLP-1. Para melhor organização e desenvolvimento do raciocínio, o tema foi subdividido em três tópicos. 

 

  1. Origem do problema 

 Em meados de 2023 a agência regulatória da Islândia reportou 2 possíveis casos de associação entre o uso das medicações e suicídio. Ao mesmo tempo, algumas reportagens começaram a aparecer na mídia leiga sobre o assunto, crescendo a pressão para uma avaliação mais cuidadosa do assunto. 

Historicamente, é sabido que diversos tratamentos para obesidade, independentemente de sua classe, podem estar relacionados a uma maior incidência de suicídio, ainda que não se estabeleça uma clara relação causal da medicação em si. A única medicação de fato associada historicamente foi o rimonabanto, que foi retirada do mercado e passou a atrair mais a atenção da indústria e da comunidade médica em si para o tópico. 

Além disso, é importante saber que até mesmo indivíduos pós cirurgia bariátrica apresentam maior risco de suicídio, o que levanta hipóteses sobre causalidade entre perda de peso e o risco ou a superposição de fatores de risco que tais pacientes apresentam. 

O sistema nervoso central (SNC) expressa receptores de GLP-1, porém atualmente, postula-se (sem grande corpo de evidências) que se há algum efeito psiquiátrico da medicação, este deve ser mais positivo do que negativo, com base em pequenos estudos, que demonstram por exemplo menor risco de depressão nos usuários da medicação. 

 Evidências 

 De acordo com o FDA, houve 662 relatos de eventos psiquiátricos relacionados a risco de suicídio em usuários de aGLP-1, sendo 469 ideações, 108 tentativas e 60 suicídios de fato. O Dr. Gamble relembra a importância de se compreender que relatos e análises desproporcionais são formas descritivas de se analisar um evento. Há muitos vieses nesse tipo de estudo, pois são apenas levantadores de hipótese, uma vez que não é possível estabelecer causalidade, incidência e risco. 

Acerca do assunto, as melhores evidências compreendem apenas 3 coortes, 1 metanálise, 1 randomização mendeliana e 6 análises desproporcionais (utilizando apenas reports).  

Quanto às 3 coortes que acompanharam pacientes expostos a agonistas de GLP-1 (com DM2 ou obesidade), nenhum demonstrou aumento no risco de suicídio, seja em pacientes com DM2 (2 das coortes) ou obesidade.  

A limitação para se avaliar o tema também esbarra na acurácia dos dados levantados. Muitos episódios podem não ser reportados e outros podem ser mal interpretados, havendo risco de tanto superestimação como subestimação da quantidade de eventos. A sensibilidade de detecção de risco de suicídio gira em torno de 18 a 60%, aproximadamente. 

O posicionamento atual do FDA (janeiro de 2024) e do EMA é de que as análises preliminares não encontraram evidências de que tais medicações de fato estejam relacionadas a pensamentos ou ações suicidas. Porém, devido ao pequeno número de eventos registrados, não é possível descartar completamente que exista um risco muito pequeno e, portanto, a monitorização deve continuar até que mais dados permitam uma conclusão com maior evidência. 

Até o momento, portanto, as evidências sugerem não haver relação entre o uso de agonistas de GLP-1 e suicídio, porém é sempre importante ressaltar a necessidade de estudos mais robustos desenhados especificamente para a avaliação do tema. 

 

RISCO DE CÂNCER DE TIREOIDE 

A vice-presidente da American Thyroid Association, Dra. Elizabeth Pearce (Boston University) abordou os potenciais riscos de câncer de tireoide e uso de agonistas de GLP-1. 

  1. Risco de câncer medular de tireoide (CMT) 

Tudo começa em 2010, quando em estudos animais, foi demonstrado que existe grande expressão de GLP-1 na tireoide dos roedores. Após o uso de aGLP-1, tais animais passaram a apresentar um aumento de calcitonina, proliferação de células C e também formação de tumores. Contudo, em macacos, nenhuma evidência de aumento de calcitonina ou proliferação de células C foi encontrada mesmo após uma exposição 60x maior de dose de liraglutida do que o utilizado em seres humanos. 

O problema é o desafio que seria estudar tal efeito em seres humanos. Devido a tais achados, em primeiro lugar, pacientes com CMT são excluídos de trials envolvendo agonistas de GLP-1. Além disso, por se tratar de uma doença extremamente rara, seria necessário uma amostra muito grande para conseguir determinar sua segurança nesse cenário. 

Além disso, efeitos como obesidade, diabetes, perda de peso podem impactar diretamente no risco de câncer, configurando fatores confundidores importantes. Além disso, qual a latência para o desenvolvimento de CMT após a exposição? Muito provavelmente, na opinião da Dra. Pearce, seriam necessários meses a anos de exposição, mais provável anos, para o surgimento de um tumor sólido após um único fator de risco. 

  1. Quanto ao câncer diferenciado de tireoide (CDT) 

Em 2024, 44.020 novos casos de câncer de tireoide foram diagnosticados nos EUA, mantendo a mesma mortalidade, chamando a atenção para o já conhecido sobrediagnóstico da condição. Ou seja, os pacientes são diagnosticados e a maior parte sofre apenas os impactos negativos, não tendo qualquer impacto em melhora de sobrevida do ponto de vista populacional. 

Evidências

Uma metanálise publicada no LANCET em 2021 que avaliou participantes dos grandes ensaios clínicos randomizados envolvendo aGLP-1, demonstrou uma incidência muito baixa de CDT em tais estudos, não havendo episódios ou com incidência sempre próxima de 0,03 a 0,06%. Logo, mesmo para o CDT, que é mais comum, a amostragem precisaria ser muito maior para avaliação de tal efeito. 

Outra metanálise, que incluiu 45 estudos de pelo menos 24 semanas. não percebeu aumento de risco de câncer de tireoide, apesar da metodologia não tão adequada, na opinião da Dra Pearce, devido ao tempo de exposição muito curto e falta de plausibilidade biológica em uma possível associação. 

Um ponto fora da curva nas análises, que levantou alguma preocupação foi um estudo caso controle francês,  baseado em banco de dados nacional, que demonstrou um OR de 1,36 no risco de todos os tipos de câncer de tireoide em indivíduos expostos aos aGLP-1 por mais de 3 anos, 1,58 entre 1 e 3 anos e 1,78 na chance de CMT após 1-3 anos de exposição, mas sem maior risco se expostos por mais de 3 anos. 

Os pitfalls desse estudo foram que – em primeiro lugar – 15% de todos subtipos era medular – o que não é encontrado em nenhum banco de dados mundial, o que levou a críticas quanto à seleção de casos e controles. Em segundo lugar, o estudo observou maior chance a partir de 6 meses – o que dificilmente tem plausibilidade biológica. Além disso, chance não é risco, e tal estudo pode ser relevante para atenção e realização de um ensaio mais adequado e prospectivo. 

Já uma coorte escandinava, realizada entre 2007 e 2021, demonstrou não haver maior risco de qualquer tipo de câncer de tireoide relacionado ao uso de agonistas de GLP-1. 

Quanto aos órgãos reguladores, a opinião do FDA e do EMA difere de forma sutil. O FDA aponta que dados advindos de estudos de farmacovigilância mostram sinais de um possível aumento de risco de câncer de tireoide, porém apenas em auto-reporte, sem possibilidade de se estabelecer causalidade ou associação e, portanto, é necessário ainda ter uma atenção maior ao assunto. Já o EMA argumenta que nas luzes as evidências atuais não há suporte para a associação entre CDT e agonistas de GLP-1. 

Um ponto levantado para discussão pela Dra. é o viés de detecção, já que é possível que estejamos fazendo sobrediagnóstico e solicitando cada vez mais USG de tireoide em pacientes em uso de aGLP-1, o que pode falsamente elevar o número de diagnósticos no mundo real naqueles em uso da medicação apenas pelo fato dos pacientes realizarem mais frequentemente a ultrassonografia de tireoide. 

Para finalizar, em termos de implicações clínicas, as sugestões da Dra. Pearson são de não utilizar a medicação em pacientes com história pessoal ou familiar de CMT; Não realizar “screening” de rotina para nódulos de tireoide antes ou durante o uso de agonistas de GLP-1 só porque o paciente está em uso dessa medicação, considerando a possibilidade de sobrediagnóstico e lembrar que os benefícios dessa classe podem ser muito significativos e não devemos restringir seu uso por conta dessa preocupação, já que o risco de câncer de tireoide todavia é muito baixo e não se compara aos benefícios trazidos. 

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