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Cirurgia17 maio 2017

“Reanimação Peritoneal Direta”: um avanço promissor no tratamento do choque circulatório

O choque hemorrágico continua sendo a principal causa de morbimortalidade em vítimas de trauma, sendo o controle do sangramento um dos pontos essenciais.

O choque hemorrágico ainda continua sendo a principal causa de morbimortalidade em vítimas de trauma, sendo o controle do sangramento e a restituição do volume intravascular pontos essenciais no cuidado imediato do politraumatizado.

Apesar da adoção precoce de medidas para a restauração hemodinâmica com reanimação volêmica baseando-se em parâmetros clínicos, muitos destes pacientes costumam ainda evoluir com disfunção orgânica múltipla, visto que a simples correção do déficit de volume não corresponde à recuperação completa da perfusão tecidual.

Em decorrência dos mecanismos fisiológicos compensatórios de resposta ao choque circulatório, o organismo promove uma importante vasoconstrição sistêmica com o intuito de priorizar a perfusão tecidual de órgãos essências em detrimento de outros, levando consequentemente a uma hipoperfusão esplâncnica, especialmente da microcirculação intestinal.

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O intestino parece corresponder a um órgão não somente suscetível à lesão isquêmica precoce, mas também um agente inicial na mediação da subsequente resposta inflamatória local e sistêmica em resposta ao choque circulatório. Adicionalmente, a hipoperfusão intestinal leva a translocação da flora bacteriana, através do aumento da permeabilidade tecidual, prolongando e agravando mais ainda o quadro inflamatório generalizado.

Recentes estudos vêm buscando novas modalidades terapêuticas para atuar diretamente sobre a circulação e perfusão esplâncnica durante o choque, de forma adjunta à restauração hemodinâmica central, objetivando atenuar a subsequente resposta inflamatória. Neste contexto surgiu a “reanimação peritoneal direta” (RPD) a qual consiste na infusão de solução de diálise peritoneal diretamente na cavidade peritoneal como medida adjuvante à reanimação volêmica convencional.

A base científica para tal procedimento consiste na observação, a partir de modelos animais, de que soluções hipertônicas (ricas em lactato, glicose e produtos de degradação desta) quando infundidas na cavidade peritoneal durante períodos de hipofluxo, promovem vasodilatação visceral auxiliando na perfusão local, redução do edema endotelial e isquemia celular, melhora da funcionalidade celular. Tais alterações ocorrem de forma instantânea e sustentada mesmo após a fase inicial de reanimação.

Estudos subsequentes de fluxo sanguíneo com microesferas marcadas ainda demonstram que tais efeitos não se limitam ao intestino, havendo aumento de fluxo em 50% no baço e pâncreas, e em mais de 100% nos pulmões, músculo psoas e diafragma, quando comparada a reanimação convencional associada a RPD a apenas a reanimação convencional. Tal observação sugere que o efeito produzido pela RPD não é exclusivamente mediado por contato direto, mas também envolve a produção citocinas inflamatórias em múltiplas vias, assim como a manutenção da permeabilidade intestinal reduzindo a liberação de outros mediadores inflamatórios na corrente sanguínea.

Mais do autor: ‘Vivendo temporariamente sem os pulmões’

Importante ainda ressaltar que tais efeitos mediados pela RPD não promoveram nenhum efeito adverso na hemodinâmica central, tendo até reduzido a necessidade de líquidos intravenosos necessários para estabilização volêmica.

Em humanos, tal procedimento pode ser realizado de duas maneiras: com o abdome aberto (peritoneostomia) ou fechado.

A técnica com peritoneostomia consiste na colocação de dreno tubular (Jackson-Pratt 19Fr) com sua ponta colocada na base do mesentério, seguido do fechamento abdominal temporário com sistema à vácuo tipo Barker (camada de plástico estéril fenestrado, esponjas, dois drenos torácicos ≥28Fr e filme de curativo aderente como Ioban). Os drenos torácicos são posteriormente conectados ao vácuo por meio de conexão em Y, tomando-se o cuidado para que o local de sucção dentro do abdome não esteja em contato direto com o intestino. A infusão da solução de diálise peritoneal (2.5% glicose, 5.67 g/L cloreto de sódio, 3.92 g/L lactato de sódio, 0.257 g/L cloreto de cálcio e 0.152 g/L cloreto de magnésio pH 5.5, 398 mOsm/L, aquecida a 37°C) é feita pelo dreno tubular (Jackson-Pratt) a 800ml/h na primeira hora e depois continuamente a 400ml/h, enquanto os drenos torácicos mantém uma sucção contínua.

Por outro lado, a técnica fechada consiste na introdução de um cateter de diálise peritoneal convencional por meio da técnica aberta de Seldinger em incisão infraumbilical, com posterior infusão de 1L de solução peritoneal em 1h (por meio de gravidade ou bomba de infusão), manutenção do liquido dentro da cavidade por 1 hora e posteriormente é permitida a drenagem em sifonagem por mais 1h. O processo é então repetido durante toda a fase de reanimação.

Resultados em estudos com humanos evidenciaram diversos benefícios. No grupo de pacientes submetidos a RPD após cirurgia de controle de danos houve a diminuição no tempo de para o fechamento abdominal definitivo, maiores taxas de fechamento aponeurótico primário, redução de incidência de fístulas enterocutâneas e hérnias abdominais. Enquanto que no grupo de pacientes após catástrofes abdominais houve adicionalmente redução no tempo de ventilação mecânica e tempo de internação em unidade de cuidados intensivos.

Veja também: ‘Como evitar a sobrecarga volêmica?’

Recentemente, o uso de RPD em pacientes com morte encefálica candidatos a doação de órgãos para manutenção hemodinâmica demonstrou menor volume de cristaloides infundidos assim como vasopressores atingindo-se as metas para manutenção do doador cadavérico, aumento do fluxo hepático além de obtenção de melhor pO2, aumentando assim a taxa de captação de órgãos por doador, principalmente dos pulmões.

Novos estudos ainda necessitam ser realizados em larga escala para definição da aplicação deste método em maiores proporções e em outros grupos de pacientes, no entanto, até o momento este se demonstrou não somente seguro e factível como também potencialmente benéfico. Ademais, estudos adicionais são necessários para determinação de novas soluções a serem infundidas, visto que por hora somente se utilizaram soluções comerciais e a eventual adição de novos componentes pode trazer benefícios a resposta fisiológica pós-reanimação  posterior ao choque circulatório.

Referências:

  • J.L. Weaver, J.W. Smith. Direct Peritoneal Resuscitation: A review. International Journal of Surgery 33 (2016) 237e241
  • Zakaria et al. Mechanisms of Direct Peritoneal Resuscitation–Mediated Splanchnic Hyperperfusion Following Hemorrhagic Shock . Shock. 2007 April ; 27(4): 436–442.
  • Crafts DT et al. Direct peritoneal resuscitation improves survival and decreases inflammation after intestinal ischemia and reperfusion injury. Journal of surgical research 199 (2015) 428 e43
  • Garrison RN, ZaKaria ER. Peritoneal resuscitation.The American Journal of Surgery 190 (2005) 181–185
  •  Zakaria et al. Direct Peritoneal Resuscitation From Hemorrhagic Shock: Effect of Time Delay in Therapy Initiation. J Trauma. 2005 March ; 58(3): 499–508.
  •  Garrison et al. Direct peritoneal resuscitation as adjunct to conventional resuscitation from hemorrhagic shock: A better outcome. Surgery, Vol 136, Number 4, (2004) 900-908
  • Zakaria ER, Hurt RT, Matheson PJ, Garrison RN. A novel method of peritoneal resuscitation improves organ perfusion after hemorrhagic shock. Am J Surg 2003;186: 443-8
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