Quem acompanha gliomas no dia a dia sabe que a ressonância é indispensável, mas tem muitas armadilhas: edema, necrose, pseudoprogressão e alterações inespecíficas confundem o raciocínio justamente quando decisões cirúrgicas, radioterápicas e sistêmicas precisam ser tomadas. A tomografia por emissão de pósitrons (PET) com traçadores de aminoácidos ganhou espaço como complemento da RM, ajudando a diferenciar lesão tumoral de efeito do tratamento, a orientar biópsia e a definir volumes de radioterapia.
O artigo é uma atualização conjunta do grupo RANO (Response Assessment in Neuro-Oncology) e da EANO, oito anos após o primeiro guideline de 2016, e consolida onde o PET realmente agrega, com ênfase na superioridade prática do PET com aminoácidos (FET, FDOPA, MET) sobre o FDG-PET em gliomas. Os autores também deixam claro o que ainda falta: evidência de nível 1 (ensaios randomizados) mostrando benefício em desfechos quando o PET é incorporado à rotina, algo que direciona prioridades de pesquisa para os próximos anos.
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Desenho metodológico
Trata-se de um Policy Review elaborado por especialistas da RANO (subgrupo de PET) e da EANO. A atualização reavalia a literatura pós-2016 e ancora as recomendações em estudos que validaram achados do PET por via histomolecular (biópsia/peça) ou por curso clínico (evolução), refinando o que antes já era conhecido e propondo um quadro de força das recomendações (forte, moderada, fraca) e níveis de evidência (Oxford 2011). Em linguagem prática, quando o guideline diz “forte”, é porque o conjunto de dados sustenta o uso; “moderada” pede mais cautela; “fraca” sinaliza cenário promissor, mas com dados ainda limitados.
A revisão explicita que o PET com aminoácidos tem vantagem técnica nos gliomas (melhor contraste tumor-cérebro, menor captação em tecido normal) e organiza as indicações ao longo da trajetória do paciente: diagnóstico diferencial, planejamento de biópsia/resseção, definição de volumes para RT, avaliação de resposta e distinção recidiva versus alterações relacionadas ao tratamento. O documento também sintetiza recomendações pediátricas e aponta a criação, em 2024, do PET RANO 1.0, que seriam critérios padronizados de resposta por PET que devem ser adotados, sobretudo em ensaios clínicos.
População envolvida
Por ser um guideline, não há uma coorte única. A população aqui são pacientes com gliomas (adultos e crianças) nas diversas fases da doença. A maior parte das evidências vem de adultos; ainda assim, o texto reserva seção específica para a população pediátrica (gliomas pediátricos e tumores do SNC), com aplicação preferencial do PET com aminoácidos em cenários de dúvida após RM e na diferenciação entre recidiva e alteração de tratamento. O guideline é um esforço multidisciplinar (neuro-oncologia, neurocirurgia, radiologia, medicina nuclear, radioterapia) e transnacional, refletindo experiência acumulada em centros com grande
Resultados
- a) Diagnóstico diferencial em lesões recém-detectadas
Quando a RM deixa dúvida entre neoplasia e lesão não neoplásica, o PET com aminoácidos apresenta alto desempenho diagnóstico. Útil lembrar que PET negativo não exclui glioma; o padrão-ouro segue sendo a histopatologia, mas o PET ajuda a reduzir incerteza e a escolher melhor o local da biópsia, especialmente em tumores não captantes na RM.
- b) Biópsia e planejamento cirúrgico
O PET com aminoácidos expande a visão além do realce por gadolínio, detectando componente tumoral em áreas FLAIR e mapeando regiões mais agressivas; integrada à RM na neuronavegação, aumenta a chance de amostrar o foco mais representativo e pode ajustar a extensão de ressecção (por vezes para mais, por vezes para menos).
- c) Delineamento para radioterapia.
O PET costuma delimitar volumes maiores do que a RM, sobretudo em glioblastoma, e isso tem consequências. Em estudo de fase 2, escalonamento de dose guiado por FDOPA-PET associou-se a melhor PFS em 6 meses e sobrevida global (efeito mais claro em tumores MGMT não metilados), enquanto o ensaio GLIAA-NOA 10 (reirradiação baseada em FET-PET versus RM) não mostrou ganho de PFS/OS. A leitura proposta pelos autores é ponderada: usar PET sozinho para contornar pode não bastar; o valor está na combinação com RM e no cenário certo (o próprio benefício da reirradiação em OS é debatido). Ponto importante: limiares de captação variam por traçador e normalização, e ainda não há padrão validado em ensaio prospectivo para planejamento
- d) Recidiva versus efeito do tratamento.
Aqui o PET com aminoácidos (FET, MET e FDOPA, fluciclovina) brilha: tem acurácias altas (~80-90%) para distinguir recidiva de pseudoprogressão/necrose, superando o FDG-PET, que tem pouco valor nessa pergunta. Em alguns serviços, esse é o uso mais imediato, pois evita biópsias desnecessárias e mudanças precipitadas de terapia
- e) Avaliação de resposta.
Mudanças precoces de captação em FET-PET após radioquimioterapia (6–8 semanas) predizem desfechos melhores, algo que a RM nem sempre capta. Em gliomas recorrentes tratados com bevacizumabe (±lomustina), o PET com FET/FDOPA identifica resposta metabólica e ajuda a diferenciar “pseudoresposta”, e a resposta metabólica se associou a sobrevida >9 meses em estudo prospectivo. Para regorafenibe, há sinais de utilidade, mas com cautela: o braço regorafenibe no GBM-AGILE foi interrompido por futilidade. Em gliomas IDH-mut não captantes, séries recentes mostraram resposta metabólica por FET-PET às terapias alvo de IDH (ex., vorasidenibe) em poucas semanas, enquanto a RM permanecia inalterada, cenário em que os novos critérios PET RANO 1.0 dão linguagem comum para ensaios e, futuramente, para a prática.
- f) Informação molecular e prognóstico.
Modelos com FET/FDOPA/MET mostram capacidade preditiva para IDH, 1p/19q, MGMT e TERT, mas a generalização ainda exige validações externas robustas. Em prognóstico, alta intensidade de captação associa-se a pior evolução, tanto no pré-operatório quanto no pós-operatório.
- g) População pediátrica.
Em crianças, o PET com aminoácidos é especialmente útil quando a RM é inconclusiva e na diferença recidiva/efeito do tratamento; aquisição dinâmica de FET pode acrescentar valor. A recomendação é mais conservadora (força fraca) por menor volume de dados, mas a direção é promissora.
- h) Custo, acesso e futuro.
Análises sugerem custo-efetividade ao evitar terapias ineficazes e biópsias desnecessárias; a incorporação e reembolso vêm avançando. No horizonte, IA/radiômica e teranóstica (imagens moleculares + radionuclídeo terapêutico) devem ampliar o papel da PET em gliomas.
Limitações e nuances
Faltam ensaios randomizados que demonstrem ganho real (sobrevida/qualidade de vida) ao integrar PET ao fluxo. Persistem heterogeneidade de limiares, diferenças entre traçadores, logística (ex., FET dinâmica demanda 40–50 min), e o cuidado de não usar PET isoladamente para decisões como reirradiação: o casamento com a RM é a regra.
Considerações clínicas e implicações para a prática
Quando pedir PET com aminoácidos? Pense nele quando a RM não fecha o diagnóstico, para planejar biópsia/reseção em tumores pouco ou não captantes, para definir volumes-alvo de radioterapia (em conjunto com a RM) e, sobretudo, para distinguir recidiva de efeito do tratamento.
Como interpretar no contexto certo? Em resposta, valorize mudanças precoces de captação; use PET RANO 1.0 em protocolos e pesquisas. Lembre-se que respostas metabólicas podem aparecer antes da RM, principalmente com antiangiogênicos
Evite extremos. Quem guia é a integração PET+RM. Nem tudo que “acende” é alvo para ampliar volume cirúrgico/RT; nem toda ausência de captação descarta doença. Patologia continua sendo a palavra final quando houver dúvida.
Atenção à logística. Se o serviço tiver FET dinâmico, ótimo, pois ele agrega; se não, a aquisição estática já traz benefícios importantes. Conheça o traçador disponível e os limiares localmente validados.
Em crianças, use com cautela e objetivo claro. Maior utilidade quando a RM é inconclusiva e para distinguir recidiva de alteração de tratamento.
Concluindo, a atualização RANO/EANO consolida o PET com aminoácidos como adjunto de alto valor na jornada do paciente com glioma, especialmente para diferencial difícil, biópsia/planejamento, recidiva vs. efeito de tratamento e avaliação de resposta, com o lembrete honesto de que ainda precisamos transformar boa acurácia diagnóstica em ganho comprovado de desfechos para todos os pacientes.
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