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Cirurgia8 abril 2025

Apendicite aguda não complicada em crianças: apendicectomia ou antibioticoterapia?

Estudo teve como objetivo comparar o tratamento cirúrgico e conservador (somente antibioticoterapia) nos casos de apendicite não complicada em crianças

A apendicite consiste em uma inflamação aguda do apêndice cecal, causada por uma obstrução da sua luz geralmente por fecalitos ou hiperplasia de nódulos linfoides, ou ainda devido a neoplasias, parasitas ou corpo estranho.  

A obstrução da luz apendicular gera o aumento da produção de muco intraluminal, distensão, proliferação bacteriana e inflamação que provoca aumento da tensão transmural por congestão vascular, com risco de necrose e perfuração. 

Sendo a apendicite aguda a emergência cirúrgica mais comum em crianças, as discussões acerca do tratamento mais adequado são muito relevantes e frequentes no dia a dia do cirurgião pediátrico. 

O tratamento padrão da apendicite aguda é a cirurgia (apendicectomia). Apesar do tratamento conservador (não cirúrgico) dos casos de apendicite não complicada existir há muito tempo, essa abordagem só começou a ser comparada formalmente à técnica padrão recentemente, ganhando mais apoio na literatura nos últimos anos.  

Com base nessa tendência, em janeiro de 2025 foi publicado um estudo aberto, internacional, multicênctrico e randomizado que teve como objetivo comparar o tratamento cirúrgico e conservador (somente antibioticoterapia) nos casos de apendicite não complicada em crianças.  

A apendicectomia videolaparoscópica é o procedimento cirúrgico de escolha nos casos de apendicite, apresentando baixo risco de complicações nos casos em que não há perfuração. No entanto, é um procedimento que exige anestesia geral, expondo o paciente aos riscos inerentes a essa abordagem. 

Diversos estudos prévios evidenciaram o sucesso do tratamento inicial com antibióticos nos casos de apendicite não complicada, associando essa abordagem a um retorno mais rápido às atividades habituais quando comparado à cirurgia. Entretanto, a maioria dos estudos em crianças não apresentou a robustez dos estudos realizados em adultos.  

Os estudos grandes, multicêntricos e randomizados, como o CODA, foram realizados, na maioria das vezes, em adultos. Nesse estudo (CODA), 1552 pacientes foram separados aleatoriamente para receber o tratamento com antibióticos e cirurgia, com o objetivo de comparar os resultados dos dois grupos. Os autores concluíram que o tratamento com antibióticos não seria inferior ao tratamento cirúrgico de acordo com os critérios estabelecidos por eles. No entanto, a taxa de falha da antibioticoterapia foi de 30%. 

Os estudos prospectivos e randomizados em crianças foram pequenos, não havendo estudos maiores e em grande escala que permitissem uma comparação imparcial dos resultados entre as duas abordagens, motivando a realização desse estudo (APPY), cujo objetivo foi comparar a apendicectomia laparoscópica com a antibioticoterapia isolada em crianças com apendicite não complicada. 

Métodos 

O estudo foi realizado em 11 hospitais infantis do Canadá, EUA, Finlândia, Suécia e Singapura. O protocolo utilizado foi desenvolvido de acordo com as diretrizes do SPIRIT 12. 

A população do estudo foi composta por crianças de 5 a 16 anos, com diagnóstico de apendicite não complicada. A inscrição no estudo foi oferecida às famílias após o diagnóstico, podendo essas optar pela inscrição ou pela cirurgia diretamente. 

Os critérios de inclusão incluíram o diagnóstico de apendicite não perfurada. Os critérios de exclusão foram a suspeita clínica e/ou radiológica de apendicite perfurada, presença de massa ou plastrão no apêndice, tratamento prévio com antibiótico, teste positivo para gravidez, episódio anterior de apendicite ou massa/plastrão tratados conservadoramente, diagnóstico de câncer em tratamento ou presença de comorbidade que influenciaria a duração do tempo de internação hospitalar. 

Os pacientes foram designados de forma aleatória em dois grupos (antibioticoterapia isolada X apendicectomia laparoscópica) através de uma ferramenta de randomização online, em uma proporção de 1:1, com parâmetros definidos sobre a alocação dos pacientes, estratificação por sexo, duração dos sintomas (> 48 horas X < 48 horas) e local do estudo. 

O mascaramento dos pacientes e equipe médica que conduziu e acompanhou os pacientes não foi implementado. 

O grupo que recebeu tratamento não cirúrgico foi submetido à hidratação venosa, analgesia e antibioticoterapia. A escolha dos antibióticos utilizados ocorreu de acordo com os protocolos padronizados em cada centro. 

Os pacientes foram liberados para se alimentar, iniciando com dieta líquida clara e progredindo conforme a aceitação.  

A alta hospitalar ocorreu após o período mínimo de 12 horas de antibioticoterapia intravenosa, de acordo com o quadro clínico do paciente, incluindo a boa aceitação da dieta, controle da dor e sinais vitais dentro dos parâmetros de normalidade. 

Nos casos em que o paciente não apresentou melhora que permitisse a programação de alta após as primeiras 24 horas da admissão, foi decidido em conjunto com a família a manutenção de mais 24 horas de antibioticoterapia ou encaminhamento para a cirurgia. Os pacientes que não apresentaram melhora após o segundo dia de antibioticoterapia foram encaminhados para a cirurgia. 

Nos casos em que o paciente apresentou piora nas primeiras 24 horas, foi realizado o encaminhamento diretamente para a cirurgia (apendicectomia). 

Para os pacientes do grupo de tratamento não cirúrgico que receberam alta hospitalar, foram prescritos amoxicilina com clavulanato ou ciprofloxacino + metronidazol por 10 dias. Não houve orientação para apendicectomia eletiva. As famílias foram orientadas em relação à indicação da cirurgia nos casos de recorrência da apendicite dentro do período de 12 meses. 

Os pacientes do grupo que foram encaminhados para a cirurgia receberam hidratação venosa e antibióticos e tiveram o procedimento realizado dentro da logística de cada centro. Após a cirurgia, nos casos em que foi confirmada a apendicite não complicada (sem perfuração), a antibioticoterapia foi suspensa e os pacientes receberam alta hospitalar de acordo com o quadro clínico, inclusive no mesmo dia da cirurgia, em alguns casos. 

Os pacientes que apresentaram perfuração receberam tratamento de acordo com o protocolo de cada centro. 

Em ambos os grupos, os pacientes receberam um diário com o objetivo de documentar os horários de medicação, retorno das atividades, retorno escolar e o nível de atividade física e prática de esportes. 

Os pacientes foram avaliados dentro de seis semanas, presencialmente ou por contato telefônico. 

O tratamento foi avaliado em relação à presença de falhas (período de 12 meses) e em relação à satisfação do paciente, através de um questionário. 

Resultados 

Em relação aos resultados, o desfecho primário foi a falha no tratamento. No grupo do tratamento não cirúrgico, a falha do tratamento foi definida como a necessidade de apendicectomia dentro de um ano. Já no grupo do tratamento cirúrgico, a falha do tratamento foi definida como uma apendicectomia negativa ou a presença de complicação relacionada à cirurgia, que necessitou de anestesia geral, dentro de um ano. 

Os desfechos secundários foram definidos como complicações (eventos adversos relacionados ao tratamento cirúrgico e não cirúrgico que requerem intervenções sem anestesia geral) e duração total das internações hospitalares. 

A amostra foi recrutada no período de 20 de janeiro de 2016 a 03 de dezembro de 2021. Foram randomizados 459 (49%) pacientes para o grupo cirúrgico (apendicectomia) e 477 (51%) para o grupo não-cirúrgico (antibioticoterapia). 

O resultado primário foi avaliado naqueles com seguimento de 12 meses. 

Houve uma taxa de falha de 7% (28) no grupo da apendicectomia, com taxa de 5% de apendicectomias negativas e taxa de 2% de intervenções adicionais com necessidade de anestesia geral. 

No grupo da antibioticoterapia isolada, a falha do tratamento ocorreu em 153 (34%) dos 452 pacientes. 

Em relação a falta de dados, a proporção de dados faltantes foi maior no grupo da apendicectomia (14%) do que no grupo da antibioticoterapia isolada (5%). Assumindo que a falha de tratamento é a mesma nos pacientes com dados completos e com falta de dados, os resultados gerais do estudo permanecem semelhantes, ou seja, uma taxa de falha de 32% no grupo do tratamento não cirúrgico e uma taxa de falha de 6% no grupo de tratamento cirúrgico. 

Dos 459 pacientes que foram randomizados para apendicectomia, 28 (6%) apresentavam perfuração. Dos 72 pacientes aleatoriamente designados para antibioticoterapia isolada e que falharam precocemente, 25 (35%) apresentavam perfuração. 

Não houve mortes ou eventos adversos graves nos 2 grupos. O risco relativo de ter um evento adverso relacionado ao tratamento com antibioticoterapia isolada em relação à apendicectomia foi de 4,3 (IC 95%). 

Eventos adversos foram registrados em 8% dos pacientes (maioria desconforto gastrointestinal) do grupo não cirúrgico e em 2% dos pacientes do grupo cirúrgico (maioria infecção do sítio cirúrgico). 

A duração média de internação hospitalar foi de 01 dia para os pacientes que foram submetidos à apendicectomia e de 1,25 dias para os pacientes tratados com antibioticoterapia isolada. 

O retorno às atividades habituais e à escola, registrado nos diários, foi mais rápido no grupo não cirúrgico. Além disso, a duração do tempo de uso de analgésicos foi menor nesse grupo. 

No grupo não cirúrgico, 73% dos pacientes e familiares se mostraram satisfeitos com o tratamento, sendo a principal razão, o fato de terem evitado uma cirurgia. Dos 27% que se mostraram insatisfeitos, o motivo mais comum era a preocupação com a recorrência do quadro. 

No grupo cirúrgico, 73% dos pacientes também se mostraram satisfeitos, principalmente pela eficácia da cirurgia e por ficarem felizes em evitar o risco de recorrência. Dos 27% que se mostraram insatisfeitos, a maioria gostaria de evitar a cirurgia. 

Discussão e impactos na prática clínica 

O desenho desse estudo considerou uma margem de não inferioridade em 20%. Baseado nisso, evidenciou-se que o manejo com antibioticoterapia isolada seria inferior ao tratamento cirúrgico com apendicectomia. Os resultados, assim como o valor da margem estabelecido, podem ser discutidos e, provavelmente, serão interpretados de pontos de vista diversos. 

O estudo ressalta que alguns médicos e familiares/pacientes podem estar dispostos a aceitar uma margem superior a 20%, assim como outros podem estar dispostos a aceitar uma margem ainda mais restrita.  

Os mais interessados em evitar uma cirurgia verão esses dados como aceitável, enquanto os mais interessados em evitar a falha do tratamento ou recorrência do quadro interpretarão essa taxa de falha como inaceitável. 

O estudo apresentou limitações relacionadas à incapacidade de rastrear com precisão os consentimentos recusados e os motivos de recusa, assim como os 10% de dados faltantes. 

Por fim, foi possível concluir que, no contexto adotado de uma margem de não inferioridade estabelecida de 20%, o tratamento da apendicite não complicada com antibioticoterapia isolada foi inferior ao tratamento cirúrgico com apendicectomia, apesar do período mais curto de convalescença e retorno mais rápido às atividades no grupo não cirúrgico. 

O que levar para casa? 

Diante do exposto no estudo supracitado, trazendo para a nossa prática clínica, observamos também uma superioridade do tratamento cirúrgico em relação ao tratamento conservador nos casos de apendicite aguda não complicada.  

Apesar da tendência ao tratamento conservador ser muito mais frequente na pediatria em diversas situações, a falta de garantia em um seguimento apropriado, assim como dificuldade de pronta abordagem nos casos de piora, nos leva a maior indicação cirúrgica nesses casos.  

O paciente que inicia um protocolo de tratamento conservador necessita de um acesso garantido e sem dificuldades à unidade de saúde, assim como parecer do cirurgião. Além disso, os responsáveis precisam estar orientados, cientes e de acordo com o tratamento. Na maioria dos casos, os pais ficam aflitos por lidarem de maneira conservadora com uma doença classicamente de tratamento cirúrgico. 

A insegurança dos pais muitas vezes se reflete nos pediatras, tornando-se também um fator importante a ser considerado para a indicação cirúrgica. Sendo assim, podemos concluir que, na prática clínica atual, o tratamento conservador é uma possibilidade cada vez mais crescente, no entanto existem fatores que devem ser considerados para que ele seja adotado como primeira escolha.  

A cirurgia, apesar de mais invasiva, ainda é o tratamento mais indicado e mais seguro quando avaliamos o contexto da maioria dos pacientes. 

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Referências bibliográficas

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