Logotipo Afya
Anúncio
Carreira29 outubro 2025

Saúde territorial: a medicina que escuta o ambiente

Como anamnese ampliada, considerando território, cultura e condições socioambientais, melhora o cuidado na Amazônia
Por Redação Afya

Os impactos ambientais, cada vez mais visíveis no cotidiano das populações, exigem da medicina uma escuta atenta que vá além da clínica tradicional. Em regiões como a Amazônia, onde o território molda modos de vida, prevalência de doenças e até o acesso a cuidados de saúde, a anamnese precisa ser ampliada para captar riscos socioambientais.

O médico ribeirinho Dr. Fagner Carvalho, pós-graduado em Psiquiatria e Infectologia e professor da Afya Abaetetuba, compartilha sua experiência sobre como adaptar a entrevista clínica a esses desafios.

Estilo de vida: comida, água e cultura local

No atendimento a populações ribeirinhas, compreender o modo de vida é essencial para identificar riscos de saúde que não aparecem nos manuais, mas estão presentes no cotidiano. Cada detalhe da alimentação, do acesso à água e das práticas culturais carrega informações valiosas para uma anamnese completa.

“Geralmente, o modo de vida do paciente já me diz muito sobre sua saúde. Pergunto qual é a principal comida da família: se o peixe é a base da dieta, se consomem caça, se tomam açaí diariamente e de onde vem esse açaí. Isso é crucial, pois, por exemplo, a Doença de Chagas pode ser transmitida pelo açaí mal manipulado”, explica.

Além da alimentação, outros fatores cotidianos também são determinantes. O acesso à água, a forma de cultivo e o uso de plantas medicinais revelam vulnerabilidades que exigem atenção redobrada. “Quero saber de onde vem a água, se é do rio, da chuva ou de um poço, e se há algum tratamento antes do consumo. Pergunto sobre o uso de veneno no roçado, já que muitos aplicam agrotóxicos sem proteção, e sobre plantas medicinais, que podem interferir em remédios de uso contínuo”, completa.

Tempo do rio e barreiras de acesso

“A anamnese precisa levar em conta o tempo do rio”, explica. Perguntar quanto tempo levou para chegar ao posto de saúde, se usou barco próprio ou emprestado, ou se a maré dificulta o retorno, é essencial para planejar condutas realistas. “Às vezes, o médico pede um retorno em uma semana, mas a viagem depende da altura da maré e não é possível cumprir o prazo”, ressalta.

Considerar o deslocamento do paciente evita a elaboração de planos de cuidado impossíveis de cumprir e ajuda a adaptar intervenções à realidade local.

Habitação e saneamento

Questões sobre moradia são fundamentais para a avaliação de saúde comunitária. Saber como é o banheiro, quantas pessoas compartilham o mesmo quarto e se a residência alaga durante cheias permite identificar riscos de doenças como diarreia, leptospirose e dengue, além de avaliar impactos crônicos sobre a saúde mental.

A superlotação, a falta de saneamento e a perda recorrente de bens materiais podem gerar estresse, ansiedade e sensação de vulnerabilidade, dificultando a adesão a medidas preventivas. Considerar esses fatores é essencial para planejar intervenções realistas, que integrem prevenção de doenças e promoção do bem-estar emocional.

Leia mais: Afya define metas ambientais para sua agenda ESG até 2035

Saúde mental e cultura

A saúde psíquica está intimamente ligada ao território e às condições de vida. A perda de plantações, dificuldades de sustento e isolamento social aumentam o risco de ansiedade, depressão e estresse crônico.

“Pergunto se recorrem a rezadores ou benzimentos. Esse espaço de escuta é essencial, porque revela como a comunidade compreende a própria doença e permite construir um cuidado respeitoso e culturalmente sensível”, afirma. Reconhecer práticas tradicionais fortalece a relação médico-paciente e amplia as estratégias de cuidado, integrando intervenções clínicas com suporte emocional e comunitário.

Doenças prevalentes: olhar além do óbvio

No interior da Amazônia, cada detalhe pode ser determinante para o raciocínio clínico. Perguntar sobre barbeiros em casa, morcegos nos telhados ou histórico familiar de “coração crescido” pode indicar risco para Doença de Chagas. Episódios de diarreia associados ao consumo de açaí, ao contato com a mata ou com animais domésticos sinalizam vulnerabilidade a malária, leishmaniose e outras zoonoses.

Esse olhar atento permite antecipar complicações, orientar medidas preventivas e adaptar condutas terapêuticas ao contexto local, integrando a dimensão epidemiológica à prática clínica diária.

Um checklist para todo médico

Mesmo fora da Amazônia, Dr. Carvalho recomenda incorporar perguntas socioambientais em anamnese de pacientes da região:

  • De onde vem a água consumida?
  • Qual é a principal comida da família?
  • Como é a moradia e o saneamento?
  • Quais doenças são comuns na comunidade?
  • Como chegou até o serviço de saúde?
  • Usa plantas medicinais ou práticas tradicionais?

Também é importante considerar doenças prevalentes (malária, leishmaniose, tuberculose, hepatites, hanseníase, Chagas) e incluir perguntas sobre saúde mental.

Escutar o território

“O que aprendi é que o ambiente não está fora do corpo, ele habita o corpo”, sintetiza o médico, evocando o conceito de Saúde Única (One Health), que reconhece a interdependência entre pessoas, animais e meio ambiente.

“A medicina só será completa se for territorializada, capaz de dialogar com desafios ambientais e sociais. É preciso perguntar mais, escutar atentamente e respeitar o contexto de vida do paciente, entendendo que saúde, cultura e território estão inseparavelmente conectados”.

Autoria

Foto de Redação Afya

Redação Afya

Produção realizada por jornalistas da Afya, em colaboração com a equipe de editores médicos.

Como você avalia este conteúdo?

Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.

Compartilhar artigo

Newsletter

Aproveite o benefício de manter-se atualizado sem esforço.

Anúncio

Leia também em Relacionamento Médico-Paciente