Rompendo o silêncio: o tabu do suicídio no meio médico
O suicídio é o ponto final de uma longa cadeia de sofrimento e um importante problema de saúde pública – a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que mais de 800 mil pessoas morrem a cada ano por suicídio.
Entre os médicos, os dados de suicídio são alarmantes: médicos (gênero masculino) tem taxa de mortalidade por suicídio 44% maior do que a população em geral e médicas (gênero feminino) possuem um risco ainda maior, de 90%.
Estresse na formação médica
Há inúmeros elementos da cultura formativa médica que contribuem para a deterioração da saúde física e mental. A formação médica tradicionalmente normalizou e até promoveu alguns níveis de estresse como necessários para a preparação de médicos competentes.
A privação de sono e as longas horas de trabalho muitas vezes são vistas como motivos de honra. O estresse e a angústia são entendidos como inerentes à identidade médica. Os médicos são educados para colocarem o paciente em primeiro lugar, muitas vezes renunciando ao seu próprio bem-estar.
Somos expostos a metas rígidas, carga de trabalho implacável, padrões de serviços exigentes e tudo isso sem que haja lugar para erros.
Muitas vezes somos encorajados a ver em nossos colegas uma relação de competição, ao invés de apoio. O isolamento social, a cobrança e a competição constante levam os médicos frequentemente a ignorar sinais e sintomas de esgotamento, depressão e ideação suicida.
Pedido de ajuda
Em uma cultura que valoriza ações heroicas, expressar vulnerabilidades ou pedir ajuda é entendido como não ser suficientemente bom para o exercício profissional.
Muitos médicos relatam temer ser expostos aos colegas, não serem considerados competentes e verem o avanço na carreira impedido, caso busquem ajuda para problemas de saúde mental. Alguns médicos desistem de buscar tratamento, enquanto outros tentam automedicar-se para tratar sintomas psiquiátricos.
Observamos, assim, que existem barreiras sistêmicas que desencorajam os médicos a buscarem ajuda, reforçando uma “cultura de silêncio” extremamente perigosa que permeia a profissão médica.
Estudos indicam que os médicos que morreram por suicídio têm menos probabilidade de receber cuidados de saúde mental do que os não-médicos.
Estima-se que até 97% das pessoas que cometem suicídio possuíam um transtorno mental no momento do ato fatal, sendo os transtornos de humor os mais frequentes.
Sintomas depressivos
Uma meta-análise de 54 estudos de 2015 avaliou a prevalência de depressão e sintomas depressivos em médicos residentes ao longo de décadas e em todo o mundo. Eles encontraram um aumento de 15,8% nos sintomas depressivos durante o primeiro ano de residência, em todas as especialidades e países de formação. Ao longo do treinamento, 20,9% a 43,2% dos residentes relataram sintomas depressivos, com sintomas aumentando ao longo do tempo.
Além dos fatores de risco gerais, o elevado risco de suicídio entre os médicos está associado aos seus conhecimentos e acesso a meios letais. A insatisfação no local de trabalho, a falta de prazer, a percepção de sobrecarga e a ausência de sentimento de pertencimento são questões diretamente ligadas à ideação suicida entre os médicos.
Percebemos, desse modo, a necessidade de criação de uma mudança cultural, onde instituições, profissionais de saúde e a população em geral concordem que o bem-estar dos médicos é uma prioridade e implementem mudanças tangíveis na formação e no ambiente de trabalho.
Mudança de cultura
Medidas educativas para reduzir o estigma em relação às questões de saúde mental e auxiliar na identificação de sinais de depressão, fatores de risco para o suicídio e sua prevenção são um primeiro passo.
Os médicos também devem ser apoiados na implementação de melhores hábitos de vida: precisamos tornar cotidianas discussões sobre a prática de atividade física regular, a manutenção de uma vida social saudável, a aceitação de limitações pessoais e o aprendizado de como equilibrar e priorizar melhor suas atividades.
É necessário ainda que dados epidemiológicos mais precisos sejam produzidos, de modo a orientar com maior eficiência os programas de prevenção – muitas vezes há uma subnotificação dos casos, com os médicos tentando proteger a memória dos colegas e hesitando em aceitar e notificar o suicídio.
Há ainda uma paucidade de estudos que tratam do suicídio entre os médicos. Particularidades dessa população, como a maior frequência de suicídio entre mulheres, destoando da população em geral, não é objeto de análise e não é explicada pela literatura.
Por fim, precisamos discutir a própria concepção de programas de ajuda para médicos, uma vez que questões relacionadas à confidencialidade, privacidade e exposição entre os pares são preocupações frequentes que levam os médicos a hesitarem em buscar ajuda, dificultando que programas institucionais tradicionais, com grupos de atendimento dentro dos serviços, sejam implementados.
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