Nossos entes queridos não estão imunes a doenças. É certo que teremos de lidar com elas também em nossa vida privada, da faringite ao infarto, e seremos consultados em situações que podem ser um tanto desconfortáveis.
A proximidade, os afetos, as nuances tão diversas de um relacionamento íntimo podem distorcer nossa percepção habitual do adoecimento. Podemos nos surpreender estando confusos e angustiados diante de quadros que trataríamos com naturalidade no âmbito profissional. Por outro lado, há de se reconhecer o privilégio de auxiliarmos, com nosso conhecimento e experiência, pessoas especiais em nossas vidas.
Ser o médico da família, mesmo que na figura de simples acompanhante, será sempre uma ocasião bastante peculiar.
Tipos de acompanhante
O professor Ricardo Bastos, em sua brilhante obra O Método Clínico, descreveu as diferentes espécies de acompanhante numa consulta médica:
- O motorista: um simples leva e traz, sequer entra no consultório, não parece ter qualquer relação com o paciente;
- O barrado-impotente: gostaria de participar da consulta, mas é proibido pelo paciente;
- O barrado-penetra: indesejado, comparece após a consulta para prestar informações adicionais;
- O presente-entrão: domina a entrevista e fala mais do que o próprio paciente;
- O presente-ausente: fisicamente presente no consultório, mas alheio a tudo, perdido em devaneios;
- O presente-útil: complementa sempre que pertinente e demonstra efetivo interesse.
Um médico poderia muito bem desempenhar qualquer um desses papeis ao acompanhar um familiar, mas, em geral, espera-se que seja um tipo genial e entusiástico de presente-útil. Aliás, não raro as impressões do médico-parente são levadas em maior consideração do que as do próprio assistente, mesmo quando não se tem uma fração do conhecimento do colega. Esse cenário exige cautela.
Leia mais: 8 estratégias para melhorar a relação com seus pacientes durante as consultas
Relato particular 1
Há poucos anos, meu pai foi diagnosticado com um tipo raro de tumor, maligno, localmente avançado, perspectivas sombrias para um homem que jamais esteve doente de fato. Naturalmente, fui acionado desde o primeiro instante, lembro-me como se fosse hoje do laudo anatomopatológico escancarado em meu celular. Súbito, surpreendi-me investido de enorme autoridade diante de quem antes tomava conta de mim. O que fazer? Soei todos os alarmes.
Convoquei meus amigos oncologistas, estudei tudo que minha cabeça atormentada permitiu, consegui acesso aos melhores médicos. Mas a situação exigia mais, era necessário que eu opinasse a cada passo, que oferecesse esperança e consolo mesmo nas horas mais escuras.
Depois de quase dois longos anos de tremenda superação e transformação, com muitas idas e vindas, lágrimas e preces, meu querido pai se foi. Ele faleceu em seu quarto, junto de sua esposa e de seus filhos, assistido por eles até o último suspiro, incrivelmente lúcido até bem próximo do fim.
Trago tantas lembranças dessa jornada, uma delas cabe pontuar aqui: qual era meu alívio ao encontrar profissionais humanos e comprometidos, qual era minha alegria – minha estranha alegria – ao me deparar com alguém em quem pudesse confiar inteiramente, que compreendesse por completo nossa situação; eram momentos em que eu podia recuar, ser mais filho do que médico, ainda que percebesse que jamais deixaria de ser médico, não importa aonde fosse.
A outra face deste dilema é reconhecer o quanto erramos. “Todo médico tem o seu cemitério particular”, dizia o sábio mestre, e não queremos que a pessoa amada esteja enterrada nele. Mesmo que tecnicamente afiados, a complexidade dos sistemas de saúde, das interações humanas e da Medicina em si nos deixa frequentemente propensos ao erro. Um pouco de experiência basta para sabermos o tamanho do mal que um médico cansado, irritado ou desatento pode fazer.
Leia mais: É possível otimizar o tempo da consulta?
Relato particular 2
Certa manhã recebo uma ligação de minha avó. Dor torácica típica desde a noite anterior, com o seu histórico, não resta a menor dúvida: angina pectoris, síndrome coronariana aguda. Levo-a ao plantão de cardiologia, transmito as informações ao colega com a maior clareza possível, sem exaltação, sem atritos. Ela está estável, tranquila e devidamente preparada para as agruras de um pronto-socorro.
O protocolo de dor torácica é deflagrado. Ocorre que já estamos no horário de almoço e haverá troca de plantão, péssima hora para se estar infartando. O médico da manhã se apressa na passagem e deixa de prestar informações cruciais. O afluente de pacientes da tarde chega a toda, e a plantonista seguinte decide liberá-la para acompanhamento ambulatorial alegando que os exames estão dentro da normalidade. O que fazer? Posso não ser cardiologista, mas sei que se trata de uma angina instável, que minha avó tem altíssimo risco de infartar nas próximas 24 horas, e – o mais importante de tudo – sei que se a cardiologista de plantão conhecesse o caso como eu, não hesitaria em interná-la com todas as precauções necessárias.
É hora de ser inconveniente: faço contato, apresento minhas credenciais, explico os pormenores à especialista e demonstro minha preocupação. À contragosto e não sem demora, ela faz o pedido de internação. Resultado: cateterismo com três lesões críticas, múltiplas angioplastias, internação prolongada com tudo que tem direito. Quinze dias depois minha avó voltava para casa e dentro de poucos meses retomava suas atividades habituais.
Conclusão
Na intrincada dinâmica de nossas relações, na enganosa dicotomia de nossas vidas, o homem e o médico devem trabalhar juntos quando a doença bate à porta de suas casas.
Em cenários que excedem as diretrizes, os protocolos e os manuais, a virtude da prudência, o discernimento do verdadeiro bem em cada situação, será nossa maior aliada.
Nem todo caso será tão dramático, nem todo desfecho será tão claro, mas como médicos devemos estar sempre atentos, é o doce fardo de nossa profissão, que saibamos carregá-lo com alegria.
Autoria

Filipe Fernandes Justus
Conteudista de Gastroenterologia do Whitebook e Portal Afya. Médico especializado em Clínica Médica, Gastroenterologia e Hepatologia pelo HC-FMUSP. Atua em ensino médico e assistência ambulatorial e hospitalar.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.