Na prática clínica, a linha que separa o cuidado científico da dimensão pessoal do paciente nem sempre é nítida. Em diversas especialidades, médicos se deparam com dilemas em que a fé do paciente, ou de seus familiares, entra em rota de colisão com a conduta médica recomendada.
Recusas a transfusões de sangue, rejeição à vacinação, limitações ao uso de anticoncepcionais ou até restrições alimentares são apenas alguns exemplos. Conversamos com dois médicos para entender até que ponto as crenças religiosas podem influenciar as decisões clínicas.

Crenças religiosas x decisões clínicas
Para o médico de família e comunidade Dr. Renato Bergallo, é essencial reconhecer que, na maioria dos casos, espiritualidade e medicina não são forças opostas, mas complementares. “Apesar de existirem discussões sobre a dicotomia entre fé e ciência, na maior parte das vezes elas caminham juntas. Muitas pessoas de fé buscam saúde, bem-estar e sentido para a vida. Essa espiritualidade pode funcionar como um importante fator de resiliência diante do sofrimento e da doença, especialmente em situações de maior fragilidade emocional”, diz.
Essa abordagem não nega os conflitos, mas os reposiciona como oportunidades de diálogo. Dr. Renato destaca que o método clínico centrado na pessoa é um recurso fundamental nesses momentos. “O paciente é o especialista em sua própria vida. O médico, em medicina. A combinação dos dois é o que gera um plano terapêutico mais eficaz, respeitoso e possível”, continua.
Ele relata casos em que precisou lidar com rituais religiosos que envolviam práticas de risco, como o consumo de álcool por parte de um pai de santo com doença hepática. “Conseguimos negociar uma redução gradual dos riscos com paciência e respeito, sempre com apoio da família e da comunidade religiosa”, complementa.
A nefrologista Dra. Ester Ribeiro também traz a vivência de conflitos éticos marcantes. “Esses casos são mais comuns do que se imagina. Quando não há risco iminente à vida, respeitamos a autonomia do paciente. O problema aparece quando a crença impede um tratamento essencial e urgente. Nessas situações, o diálogo precisa ser direto, transparente e empático”, diz.
Segundo ela, em alguns casos o próprio paciente deseja seguir a conduta médica, mas teme a reação da família. “Oferecemos confidencialidade e conduzimos o tratamento dentro dos limites que o paciente aceita. É uma forma de proteger sua autonomia sem romper laços afetivos importantes”, afirma.
Limite legal
Ambos os médicos reconhecem que há um limite legal que não pode ser ignorado. Quando o paciente é menor de idade ou incapaz de responder por si, é possível e necessário acionar o sistema judiciário para garantir o tratamento adequado. “Nesses casos, a prioridade é proteger a vida, mesmo que isso contrarie a vontade de familiares ou líderes religiosos”, explica Dra. Ester.
Já nos casos de pacientes adultos, lúcidos e informados, o direito de recusar tratamento prevalece. “Cabe a nós apresentar os riscos, esclarecer as opções e garantir que a decisão seja de fato do paciente, não de terceiros”, afirma a especialista.
A relação médico-paciente ganha, aqui, centralidade. Para ambos, o vínculo de confiança é o que sustenta o diálogo em situações de alta complexidade. “Muitas recusas são fruto de desinformação ou pressão social. Só escutando sem pressa conseguimos entender o que está realmente por trás daquela negativa”, pontua a nefrologista.
Dr. Renato concorda e acrescenta que, em sua especialidade, o acompanhamento longitudinal permite construir uma abordagem mais sensível e abrangente: “Com o tempo, o médico de família conhece a rede social, espiritual e emocional do paciente. Isso torna mais viável pactuar cuidados que respeitem sua realidade”.
A fé pessoal dos médicos também entra em cena, ainda que de maneira sutil. Dra. Ester é cristã e afirma que sua crença reforça o compromisso com a dignidade de cada paciente: “A boa ciência, quando feita com integridade, não é incompatível com uma fé vivida de forma coerente. Nunca impus minha fé a ninguém, mas deixo claro quem eu sou. E isso nunca me impediu de praticar medicina baseada em evidências”.
Dr. Renato, por sua vez, defende que a prática médica deve ser guiada por princípios éticos, científicos e de respeito à diversidade: “O papel do médico não é julgar a fé do paciente, mas acolher e cuidar, dentro dos limites legais e éticos da profissão”.
Ambos concordam que o caminho para a superação dos conflitos está no resgate da integridade, tanto científica quanto espiritual. “Infelizmente, vivemos um tempo em que parte da fé é mercantilizada e parte da ciência é manipulada. Isso fragiliza o diálogo. Mas se ambas forem levadas a sério, o conflito se reduz”, aponta Dra. Ester. Para Dr. Renato, o desafio é construir um modelo de cuidado mais sistêmico e compassivo: “A medicina precisa enxergar o ser humano em sua totalidade. Só assim conseguimos promover saúde real, que considera corpo, mente, contexto e espírito. Ou seja: um olhar biopsicossocial sobre cada indivíduo”.
Escuta qualificada, ética e profundamente humana
Diante de cenários tão diversos, o que se impõe à prática médica é a necessidade de uma escuta qualificada, ética e profundamente humana. Tratar pacientes cujas decisões são atravessadas pela fé exige mais do que conhecimento técnico: exige presença, respeito e disposição para o diálogo.
A medicina, ao reconhecer que a saúde não se resume ao corpo físico, mas se entrelaça com valores, crenças e afetos, amplia sua potência de cuidado. Ao mesmo tempo, cabe à sociedade (e também às instituições de saúde) fomentar espaços de reflexão e formação que preparem os profissionais para lidar com essa intersecção, ao mesmo tempo presente, delicada e repleta de nuances. Ao longo desse percurso, mais do que opor fé e razão, o desafio está em fazer com que ambas sirvam, de forma ética e consciente, à dignidade da vida humana.
Autoria

Redação Afya
Produção realizada por jornalistas da Afya, em colaboração com a equipe de editores médicos.
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