Dermatologia e diversidade: inclusão de peles não brancas na formação médica
Ainda que o Censo IBGE de 2022 tenha apontado que mais da metade da população do Brasil é composta por pessoas pardas e negras, a literatura médica utilizada globalmente na formação de profissionais da saúde ainda é muito voltada para a pele branca.
A ausência de uma abordagem inclusiva, que leve em consideração as especificidades das peles não brancas, perpetua desigualdades e compromete a qualidade do cuidado dermatológico oferecido à população negra.
Por isso, a inclusão de protocolos e manejo de peles de todos os fototipos nas faculdades, residências médicas e especializações é uma discussão das mais relevante do ponto de vista dermatológico, mas também social.
Falta de diversidade na formação
Conversamos com a Dra. Mayara Nascimento, uma das únicas dermatologistas especializadas em pele negra no país. A médica confessa que, quando ainda era estudante, não achava que a falta de uma especialização em peles não brancas no currículo dos dermatologistas faria tanta diferença no tipo de profissional que se tornaria.
“No entanto, o que mais recebo no consultório são pacientes surpresos, falando que já passaram por números dermatologistas, mas nunca haviam recebido tal tratamento ou escutado sobre soluções para determinado problema que os incomodava a vida toda”, diz, frisando que essa formação não representativa é ruim não apenas para o paciente, mas também para os próprios profissionais de saúde.
“A minha prática em pele negra foi, primeiro, com a minha própria pele e depois com a minha vivência clínica mesmo”, avalia Dra. Mayara, que logo cedo partiu em busca de suprir a lacuna percebida desde sempre na formação e nos consultórios médicos.
Hoje, ela é membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), professora adjunta de Dermatologia na UFRJ e mentora do Cosmiatria Na Prática, curso voltado para médicos dermatologistas e cirurgiões plásticos recém-formados que querem adquirir segurança para realizar os procedimentos.
E mais: percebendo a ausência de conteúdo direcionado a esse público específico, Dra. Mayara encontrou nas redes sociais um meio de democratizar o acesso a informações. Hoje, conta com mais de 16 mil seguidores em seu perfil do Instagram, onde fala sobre saúde e estética, mas também sobre autoestima, estilo de vida, cuidado e autoaceitação, em postagens majoritariamente voltadas às pessoas de pele preta.
Prejuízo aos atendimentos
A escassez de dados e pesquisas específicas sobre peles negras e pardas cria um vácuo de informações que impacta diretamente na prática clínica, resultando em diagnósticos tardios, tratamentos inadequados e menor satisfação dos pacientes com pele não branca.
“Vejo muitos colegas de profissão negligenciando queixas dos pacientes, naturalizando condições que são mais frequentes sim em peles negras, como ressecamentos, por exemplo, mas que precisam de um olhar mais atencioso porque têm tratamento”, aponta. “Além disso, criar uma boa conexão com o médico é muito importante para que o paciente se sinta representado, seguro e possa seguir com o tratamento adequadamente”, completa.
Especificidades
A pele negra apresenta características específicas que influenciam diretamente na apresentação e no manejo de diversas condições dermatológicas. Há, no entanto, um mito ainda muito difundido entre público leigo e até profissionais de saúde de que a pele, quanto mais pigmentada, mais difícil de tratar. Para desmistificar essa crença, a médica listou as principais diferenças entre peles brancas e não brancas:
Melanina
A maior quantidade de melanina na pele negra oferece proteção natural de 13 a 15 fps, mas também facilita o desenvolvimento de hipercromia após traumas. “Muitos médicos acham que negros não precisam de proteção. Eu recomendo filtro solar, e se possível com cor para evitar manchas”.
Colágeno
Negros têm menor flacidez e envelhecem mais lentamente, mas têm até 20 vezes mais chances de desenvolver cicatrizes inestéticas. “A pele negra precisa ser tratada com mais cuidado. Incisões cirúrgicas devem ser menores, e pacientes devem ser alertados sobre riscos de tatuagens e piercings”.
Folículo curvo
Por ter um pelo mais espesso e em formato espiral, peles negras tendem a desenvolver mais foliculite, principalmente na região da barba e íntima. Por esse mesmo motivo, os cabelos também precisam de atenção especial, pois podem ser mais desidratados e quebradiços, de difícil manejo.
Oleosidade e sudorese
Glândulas sebáceas, apócrinas e apoécrinas são maiores e em maior quantidade na pele negra, conferindo a elas maior oleosidade, o que pode se tornar uma questão muito recorrente entre os pacientes, por conta da formação de lesão de acne e do suor excessivo. Para isso, recomenda-se limpeza adequada da região, uso de produtos confiáveis e hidratação.
Desidratação
Em compensação, no corpo, ela sofre mais facilmente uma perda transepidérmica de água, causando ressecamento, eczemas e dermatites. Hiperqueratose também é uma queixa recorrente, já que áreas de grande atrito, como cotovelos e joelhos, podem ficar escurecidos. A dica nesse caso é bastante hidratação.
Câncer de pele
Embora a melanina ofereça proteção contra cânceres não melanoma, a pele negra é suscetível a outros tipos da doença. “O melanoma acral, o mesmo que Bob Marley teve na unha, é muito recorrente na pele negra e é um câncer dos mais sujeitos à metástase. Então é imprescindível que o médico esteja atento a sinais precoces em pacientes de peles escuras”.
Iniciativas
Embora ainda haja um longo caminho a ser percorrido, algumas iniciativas têm surgido com parte de um processo de inclusão e melhoria dos cuidados dermatológicos para pessoas negras no Brasil e no mundo.
É o caso do Skin of Color Update, congresso dermatológico norte-americano voltado para especialistas no atendimento a asiáticos, indígenas, indianos, latinos e todas as etnias de pele não branca. Este ano, o evento acontece entre os dias 13 e 15 de setembro, em Nova Iorque.
Lançado em 2023, o Prêmio “Dermatologia + Inclusiva” busca reconhecer e estimular pesquisas realizadas no Brasil que contribuam para o avanço do estudo de questões dermatológicas de pessoas negras. As categorias serão fotoproteção & hiperpigmentação, acne & pele oleosa, barreira da pele, couro & fibra capilar.
Já o Mind the Gap, lançado em 2020, é um guia para ajudar outros estudantes de medicina a reconhecer enfermidades em peles escuras. O guia foi criado por Malone Mukwende, um aluno de medicina negro da St George’s, University of London, que percebeu que não havia material disponível sobre pessoas não brancas.
Para Mayara, o aumento de investimentos na área parte de um interesse científico, mas também comercial, tendo em vista a prevalência da população negra mundial. Mas isso não é ruim.
“Um levantamento nos EUA aponta que, em três gerações, o número de pacientes de pele não branca vai duplicar. Portanto, criar produtos específicos para essa pele é essencial, pois são pacientes que têm suas queixas e, sobretudo, querem e merecem se cuidar”, finaliza.
#Contato da Dra. Mayara (@dramayaranascimento)
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