8h12. Estava a 80 km/h na pista da direita da Airton Senna. A manhã era clara, o clima ameno — nem frio, nem calor. O céu tinha poucas nuvens, encobrindo parcialmente um dia de outono até quente demais para a época, em São Paulo. O carro estava fechado, e, lá de dentro, apenas o som de um choro abafado.
Não, eu não estava depressivo. Não estava infeliz. Eu só estava exausto. Exausto a ponto de querer fugir, nem que fosse por um dia, daquela realidade. Daquela sensação.
Já se passavam mais de cinco anos assim. Achei que seriam só alguns meses até me estabilizar. Mas aí veio a família, as contas, o status. Um apartamento que seria tranquilo de pagar. Um carro um pouco melhor — afinal, eu merecia. Algumas viagens nacionais, outras internacionais. Imprevistos. Já fazia dois anos que eu não dormia bem. Sempre em plantão, ou prestes a dar um. E a culpa depois de um raro sono de seis horas, quebrado por uma voz de seis anos dizendo: “Vamos brincar, papai?”
Os dias eram cansativos. Apesar do mau humor típico de quem não dorme, apesar do cansaço, dos cochilos rápidos em plantões mais calmos… eu ainda gostava daquilo. Gostava mesmo. Não da correria. Mas de salvar vidas, de trazer esperança ao paciente paliativo, da emoção e adrenalina dos plantões. Só não gostava do cansaço. Dos dias e noites seguidos, sem fim.
A última noite foi longa. Nada fora do comum, um plantão normal. Mas por dentro, eu estava morrendo.
Que bom que o plantão acabou — pensei. Vou comprar uma coca, uma coxinha, comer no carro, evitar dormir ao volante.
E ali estava eu. Pensativo. Será que essa vida valia mesmo a pena?
Cheguei em casa. Minha esposa também tinha tido uma noite difícil. Mas ela entendeu meu cansaço e, sorrindo, só disse:
— Fiz um café pra você. Está tudo bem?
E eu respondi:
— Não. Não está. Estou exausto. Alguma coisa eu preciso mudar. Não consigo viver assim. Não vou tomar café agora, obrigado. Já comi no caminho. Vou dormir. Meio-dia tenho que passar visita na Santa Casa.
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Quantos médicos não têm essa mesma realidade?
Entre prescrições, orientações e urgências, cresce silenciosa a sombra do burnout — um fenômeno que já alcançou status de crise em saúde pública. Dados recentes mostram que mais de um terço dos médicos trabalham em níveis de estresse que exigem intervenção imediata. Um alerta vermelho para instituições e profissionais que, mesmo movidos pela paixão de cuidar, encontram-se no limiar do esgotamento.
Utilizando o Occupational Stressor Index (OSI), um instrumento baseado na ergonomia cognitiva, pesquisadores analisaram dados de 95 médicos e revelaram que, a cada aumento unitário na carga de estressores, as chances de burnout pessoal crescem em 11%; o burnout relacionado ao trabalho, 17%; e o voltado ao paciente, 7%. Na pandemia, a pressão adicional de lidar com pacientes suspeitos de COVID-19 elevou ainda mais o risco de esgotamento, evidenciando como certos estressores conseguem minar até a resiliência mais sólida.
No dia a dia, esses estressores se traduzem em formulários intermináveis, interrupções constantes, prontuários eletrônicos pouco intuitivos, jornadas que ultrapassam o limite seguro de concentração. E tudo isso somado a tarefas não clínicas que se acumulam nas horas vagas.
Mas há caminhos possíveis. A mesma pesquisa aponta medidas com resultados concretos: reforço das equipes clínicas para reduzir sobrecarga, suporte administrativo para aliviar o peso burocrático, e especialistas em TI para otimizar os fluxos de trabalho. Sistemas de rodízio (cross-coverage) garantem tempo reservado para atividades fora do atendimento direto, com pelo menos um dia livre por semana. Programas formais de reconhecimento valorizam conquistas e resgatam o senso de propósito.
Só que a reflexão não pode parar no diagnóstico. É urgente traduzir evidências em prática.
Imagine um ambulatório onde “escrivães digitais” acompanham o médico na telemedicina, registrando as notas em tempo real e liberando-o para focar no paciente. Muito disso já é possível com a inteligência artificial em prontuários inteligentes.
Ou férias flexíveis, em módulos curtos — que não rompam o cuidado com os pacientes, mas permitam descanso real. E por que não criar “ilhas de silêncio”? Salas de descanso em que o único som permitido é o da própria respiração. Pausas restauradoras entre turnos, ao invés de aproveitar cada metro quadrado do hospital para mais um leito ou um marcador para auditorias.
Gostaria de encerrar aquela história lá do início com duas possíveis versões. Se você tem mais de 30 anos, talvez se lembre do “Você Decide”, onde podíamos escolher o final do episódio na TV aberta.
- O médico ligou para um colega e pediu que assumisse as visitas por uma semana. Conseguiu passar os plantões. Sentou com a esposa, colocaram as contas em ordem, ajustaram os gastos, reduziram o custo de vida. Venderam um dos carros. Descobriu que era possível trabalhar menos e viver melhor. Talvez até se matricular na aula de natação que sempre quis fazer. Dormiu tranquilo, seis horas seguidas — coisa que não fazia há anos. Às 17h40 sentou no chão e brincou com a filha até o jantar. Comeram juntos uma macarronada simples com suco de maracujá. A vida simples é boa. Ele não sabia.
- Ele foi deitar. Depois, fez a visita. Na volta, decidiu que a culpa de tudo era da esposa que gastava demais. Ela, sozinha e sobrecarregada com a filha e a casa, chorou após a pequena dormir. Ele se ressentia de problemas que nem existiam. Continuou assim. Trabalhando. Morrendo aos poucos. A esposa não aguentou. Pediu o divórcio. Ele até agradeceu — achou que os custos seriam menores. Alguns anos depois, dormiu ao volante. Perdeu o controle do carro.
Autoria

Redação Afya
Produção realizada por jornalistas da Afya, em colaboração com a equipe de editores médicos.
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