A cardiomiopatia periparto (PPCM) é um tipo raro de cardiomiopatia associada à gestação, afetando mulheres previamente saudáveis. É caracterizada por disfunção do ventrículo esquerdo (VE), definida como fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) < 45%, na ausência de quaisquer outras causas conhecidas de insuficiência cardíaca (IC).
A incidência global de PPCM varia amplamente, com taxas de aproximadamente 1 em 300 nascidos vivos no Haiti, 1 em 1.000 na África e entre 1 em 1.000 e 1 em 4.000 nos Estados Unidos. A incidência real é desconhecida; entretanto, com o aumento da idade materna, maior frequência de gestação múltipla devido a técnicas contemporâneas de fertilidade e melhor reconhecimento da doença, a incidência está aumentando. A PPCM continua sendo uma causa significativa de morbidade e mortalidade materna.
O registro PPCM da ESC (European Society of Cardiology) relatou recuperação do VE em 66,1% das mulheres em 1 ano. Gestações subsequentes (SSP) representam uma preocupação importante. Embora estudos mais antigos tenham levantado preocupações sobre os riscos de SSP, dados mais recentes sugerem que gestações subsequentes podem ser seguras para mulheres que alcançaram recuperação completa do VE.
Apesar de descrições extensas sobre a apresentação clínica aguda e desfechos em curto prazo da PPCM, permanece uma lacuna no entendimento das consequências de longo prazo para essas mulheres, especialmente no que diz respeito a mudanças na função do VE, comorbidades cardiovasculares (CV) e gestações subsequentes. Nesse contexto, foi publicado um estudo recentemente no JACC com o objetivo de complementar essa lacuna.
Métodos
Foram acompanhadas 96 mulheres com PPCM nos ambulatórios de cardio-obstetrícia dos Centros Médicos em Israel, entre 2002 e 2024. Os critérios de inclusão foram:
- Estar no último trimestre da gestação até os primeiros 6 meses pós-parto;
- Apresentar sinais e/ou sintomas de IC;
- Ter FEVE ≤ 45%; e
- Não ter outras causas identificáveis de IC.
A recuperação do VE foi definida como FEVE ≥ 50% em qualquer momento durante o período de seguimento.
A idade média ao diagnóstico foi de 31,6 ± 6,4 anos. As mulheres eram predominantemente de ascendência norte-africana (36%). A mediana de paridade foi 1, com 18% (n = 17) apresentando gestação gemelar ou trigemelar, e 35% (n = 33) apresentando pré-eclâmpsia ou hipertensão gestacional.
Setenta e cinco mulheres (82%) apresentaram classe funcional NYHA III ou IV. Terapia médica otimizada foi iniciada em todas as mulheres com apresentação no pós-parto. A mediana da FEVE no momento da apresentação para toda a coorte foi 38%. Após 6 meses, a FEVE melhorou para 55%, sem aumento adicional significativo em 1 ano. Recuperação do VE foi relatada em 73 mulheres (76%).
Desfechos em curto prazo
Complicações maiores ocorrendo dentro de 30 dias do diagnóstico de PPCM — incluindo morte, suporte circulatório temporário, parada cardiorrespiratória, edema pulmonar fulminante com necessidade de ventilação, eventos tromboembólicos, taquicardia ventricular e implante de dispositivo — foram observadas em 38 pacientes (40%).
Entre as 49 mulheres que realizaram teste genético, 7 apresentaram mutações patogênicas ou provavelmente patogênicas no gene TTN (titin), e 2 com mutações em BAG3.
Seguimento em longo prazo
Em 10 anos de seguimento, hipertensão ocorreu em 16,4%, dislipidemia em 11,7% e diabetes em 9,2%.
Doença valvar significativa (regurgitação ou estenose moderada/grave ao ecocardiograma) desenvolveu-se em 6 pacientes:
- 5 com disfunção persistente do VE apresentaram regurgitação mitral moderada (início entre 1 e 18 anos),
- 1 desenvolveu regurgitação tricúspide grave, necessitando substituição valvar, apesar de recuperação da FEVE.
A taxa cumulativa de eventos em 10 anos foi 4,1%. Intervenções cardíacas foram realizadas em 10,8%, incluindo 1 transplante cardíaco após uma década de disfunção persistente do VE.
Mortalidade
Durante todo o estudo, 3 pacientes morreram. Uma morte foi atribuída a malignidade, outra a complicações de infecção viral grave; a causa da terceira permanece desconhecida. Todas as mortes ocorreram em pacientes com FEVE recuperada.
Mudanças na fração de ejeção ao longo do tempo
Desde o diagnóstico até a última visita de seguimento, houve melhora significativa aos 6 meses, que se manteve estável posteriormente, sem diferenças significativas entre os valores de 6 meses, 12 meses e última avaliação.
Pacientes com recuperação do VE apresentaram aumento acentuado da FEVE aos 6 meses (P < 0,001), mantido nas avaliações subsequentes. Em contraste, aquelas sem recuperação mantiveram FEVE persistentemente baixa, sem mudanças significativas ao longo do tempo.
Em 1 ano, 73 mulheres (76%) alcançaram recuperação do VE; 5 apresentaram declínio subsequente da função. Entre as 23 mulheres com disfunção persistente:
- 14 tinham disfunção moderada a grave (mediana FEVE: 29%)
- 4 tinham FEVE levemente reduzida (mediana: 47,5%)
- e 5 apresentaram recuperação tardia (mediana: 55%)
Esses achados ressaltam a heterogeneidade dos trajetos de recuperação.
Gestações subsequentes
Das 96 mulheres, 56 tiveram 100 gestações subsequentes: 24 tiveram uma gestação subsequente e 27 tiveram múltiplas. As 5 gestações que terminaram em aborto espontâneo ou interrupção eletiva foram excluídas da análise de desfechos.
Entre 73 partos a termo em 51 mulheres, o tempo mediano entre o diagnóstico de PPCM e a gestação subsequente foi 42 meses, e a FEVE pré-gestação subsequente foi 58%. A maioria das mulheres (88%) tinha recuperação da função do VE antes da gestação subsequente. Apenas 6 mulheres com FEVE não recuperada engravidaram novamente.
A idade gestacional média foi 38,4 ± 1,5 semanas. Todas as interrupções ocorreram por motivos obstétricos.
No grupo com recuperação, a FEVE mediana era 60% antes da gestação subsequente e permaneceu inalterada. Uma paciente teve declínio transitório para 50% no pós-parto, com melhora parcial em 1 ano.
No grupo sem recuperação, a FEVE mediana diminuiu ligeiramente de 43% para 39%.
Entre as 6 mulheres com disfunção persistente antes da gestação subsequente:
- 2 tiveram novo declínio da FEVE,
- 2 permaneceram estáveis,
- e 2 melhoraram no seguimento final.

Discussão: cardiomiopatia periparto
Este estudo observacional prospectivo é o maior e com seguimento mais longo envolvendo 96 mulheres com diagnóstico confirmado de PPCM. Os principais achados do estudo destacam desfechos globalmente favoráveis.
- Houve altas taxas de recuperação do VE após o episódio inicial de PPCM, com função cardíaca permanecendo estável na maioria dos casos.
- Não foi observada mortalidade associada à PPCM.
- A recuperação da FEVE não teve impacto no curso clínico das gestações subsequentes.
A PPCM está associada a maior taxa de recuperação e menor mortalidade do que outras formas de cardiomiopatia dilatada. A recuperação do VE frequentemente ocorre nos primeiros 6 meses. A recuperação tardia também pode ocorrer, até alguns anos após o diagnóstico.
Embora não tenha sido observada mortalidade em 1 ano em nossa coorte, 40% das mulheres desenvolveram complicações graves relacionadas ao evento-índice, em linha com relatos prévios, e quase um terço das mulheres não alcançou recuperação do VE, enfatizando a importância do seguimento em longo prazo para diagnóstico precoce e manejo adequado, a fim de prevenir morbidade e mortalidade tardias.
Relatos anteriores demonstraram que o atraso no diagnóstico é um preditor significativo de ausência de recuperação do VE e mau prognóstico. As altas taxas de recuperação em 6 e 12 meses nesse estudo podem ser atribuídas à disponibilidade de acesso ao sistema de saúde, permitindo diagnóstico e manejo rápidos, bem como seguimento em ambulatórios de cardio-obstetrícia, o que pode mitigar esses riscos.
Limitações do estudo
Trata-se de um estudo observacional e que foi realizado apenas em centros especializados de Israel, o que limita a extrapolação para outras populações e para centros com menos recursos/especialistas.
Conclusões
O estudo demonstrou que mulheres com PPCM em Israel podem alcançar desfechos gerais favoráveis em longo prazo com cuidado adequado. A maioria das pacientes apresentou altas taxas de recuperação da função ventricular esquerda e função cardíaca estável em longo prazo, acompanhadas de baixas taxas de mortalidade. Além disso, gestações subsequentes em mulheres que haviam alcançado recuperação do VE antes da gestação não impactaram negativamente seus desfechos. Destaque também para as múltiplas comorbidades cardiovasculares nessas pacientes, o que reforça a importância de vigilância contínua para aquelas com história de PPCM.
Autoria

Juliana Avelar
Médica formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Cardiologista pelo Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia
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