A incidência de eventos embólicos no período inicial após substituição valvar por bioprótese é elevada. Por esse motivo, a terapia anticoagulante com antagonistas da vitamina K é recomendada nas diretrizes atuais por 3 a 6 meses após a substituição por bioprótese, mesmo nos pacientes em ritmo sinusal.
Evidências que apoiam o uso de DOACs em pacientes com fibrilação atrial submetidos à substituição valvar por bioprótese foram fornecidas por várias análises de subgrupos de ensaios clínicos randomizados e estudos observacionais. Além disso, um ensaio clínico randomizado que comparou o uso de rivaroxabana e varfarina em pacientes com fibrilação atrial e válvula mitral bioprotética revelou a não inferioridade da rivaroxabana em relação à varfarina no desfecho composto de morte, eventos cardiovasculares maiores ou sangramento grave. Entretanto, menos de 20% dos participantes haviam sido submetidos à substituição valvar por bioprótese nos 3 meses anteriores, e não havia participantes em ritmo sinusal.
Nesse contexto, foi publicado recentemente no Circulation Cardiovascular Interventions o estudo ENBALV (Edoxaban in Anticoagulant Therapy After Surgical Bioprosthetic Valve Replacement), que teve como objetivo avaliar a edoxabana em comparação à varfarina precocemente após substituição valvar por bioprótese.
Métodos
O ensaio ENBALV foi um estudo de fase 3, randomizado, aberto e multicêntrico, que avaliou a eficácia e segurança do uso de edoxabana em comparação à varfarina dentro de 3 meses após a substituição por bioprótese em centros de referência do Japão.
Foram incluídos pacientes de 18 a 85 anos submetidos à substituição por bioprótese nas posições aórtica ou mitral. Pacientes em ritmo sinusal e com fibrilação atrial foram incluídos. Os principais critérios de exclusão foram risco extremamente elevado de sangramento, prótese mecânica ou estenose mitral maior que moderada (exceto se esta tivesse sido substituída por bioprótese na mesma cirurgia) e clearence de creatinina < 30 mL/min.
Os pacientes foram randomizados em uma proporção de 1:1 para edoxabana ou varfarina, considerando posição valvar, presença de fibrilação atrial e uso de antiagregantes. A substituição por bioprótese foi realizada dentro de 8 semanas da randomização. A anticoagulação foi iniciada após a cirurgia, conforme decisão do cirurgião.
A edoxabana foi administrada por via oral na dose de 60 mg uma vez ao dia, ou 30 mg quando a depuração de creatinina era de 30–50 mL/min, o peso corporal era ≤ 60 kg ou havia uso concomitante de inibidor de glicoproteína-P. A dose da varfarina foi ajustada de acordo com o tempo de protrombina (INR), mantendo a faixa terapêutica entre 2,0 e 3,0, sendo 2,0 a 2,5 uma recomendação aproximada das diretrizes japonesas. O tratamento anticoagulante foi mantido por 12 semanas após a cirurgia, podendo ser estendido até 24 semanas a critério do cirurgião.
O desfecho primário foi o composto de acidente vascular cerebral ou embolia sistêmica. Os principais desfechos secundários foram sangramento maior, trombo intracardíaco e o composto de AVC, embolia sistêmica ou sangramento maior, conforme definição da Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia.
Resultados
410 pacientes foram randomizados (205 para receber edoxabana e 205 para receber varfarina). Entre os 410, vinte e um não receberam edoxabana ou varfarina; portanto, 389 pacientes foram incluídos na análise final (grupo edoxabana, n=195; grupo varfarina, n=194).
Os dois grupos estavam bem equilibrados em relação às características basais. A idade média foi de 73 anos, incluindo 42 pacientes (10,8%) com ≥80 anos, e 56,8% eram homens. O escore CHADS2 médio foi 2,0±1,2; o CHA2DS2-VASc foi 3,4±1,4; e o HAS-BLED foi 1,1±0,6.
As posições da bioprótese foram: válvula aórtica apenas em 339 pacientes (87,1%), válvula mitral apenas em 37 (9,5%) e ambas em 13 (3,3%). Entre os 389 pacientes, 67 (17,2%) faziam uso de antiagregantes plaquetários e 80 (20,6%) tinham fibrilação atrial; portanto, a maioria encontrava-se em ritmo sinusal.
A duração mediana de participação no estudo foi de 98 dias. 20 pacientes do grupo edoxabana e 17 do grupo varfarina não completaram o estudo.
Os pacientes do grupo varfarina permaneceram dentro da faixa terapêutica de INR (2,0–3,0) em média por 19,0±21,6% do período do estudo. O início da varfarina ocorreu, em média, 3,2 dias após a cirurgia, enquanto o início da edoxabana foi em 4,9 dias.
O desfecho primário ocorreu em 1 paciente (0,5%) do grupo edoxabana e em 3 pacientes (1,5%) do grupo varfarina, mas o intervalo de confiança (IC 95%: −4,34 a 1,95) sugere que não houve diferença estatisticamente significativa.
Embolia sistêmica não ocorreu em nenhum paciente; portanto, todos os eventos do desfecho primário foram AVC. Trombo intracardíaco não ocorreu em nenhum paciente do grupo edoxabana, mas ocorreu em 2 (1,0%) do grupo varfarina.
Sangramento maior ocorreu em 8 pacientes (4,1%) do grupo edoxabana e em 2 (1,0%) do grupo varfarina. Não houve sangramento fatal ou hemorragia intracraniana em pacientes tratados com edoxabana, apesar da alta incidência de sangramento gastrointestinal. No grupo varfarina, 1 paciente morreu por hemorragia cerebral.
Discussão: edoxabana após troca de valva biológica
Esse estudo fornece a primeira evidência em larga escala sobre o uso de DOAC em pacientes no período inicial após cirurgia de substituição valvar por bioprótese. Notavelmente, cerca de 80% dos pacientes estavam em ritmo sinusal.
A incidência de eventos embólicos tem sido relatada como elevada precocemente após a substituição por bioprótese. Essa alta incidência pode ser causada pela formação de trombos associada à falta de endotelização das válvulas protéticas, pela elevada prevalência de fibrilação atrial perioperatória e pela disfunção cardíaca no período inicial após a cirurgia. Por isso, as diretrizes atuais recomendam anticoagulação com antagonistas da vitamina K por 3 a 6 meses após substituição por bioprótese.
Vários estudos já haviam demonstrado a eficácia e a segurança dos anticoagulantes orais diretos (DOACs) em pacientes com histórico de substituição valvar por bioprótese e fibrilação atrial. No entanto, na era dos DOACs, ainda há escassez de evidências sobre sua eficácia e segurança em pacientes no período inicial após substituição valvar por bioprótese.
O ensaio ENBALV demonstrou, então, que a incidência do desfecho primário (acidente vascular cerebral ou embolia sistêmica) no período inicial após substituição valvar por bioprótese foi de 0,5% em pacientes que receberam edoxabana, enquanto foi de 1,5% nos pacientes que receberam varfarina. Além disso, trombo intracardíaco não ocorreu em nenhum paciente em uso de edoxabana, mas foi observado em dois pacientes tratados com varfarina.
A incidência de eventos de sangramento maior foi numericamente mais alta no grupo da edoxabana (4,1% versus 1,0%). No uso da edoxabana em pacientes no período inicial após cirurgia de substituição valvar por bioprótese, é necessário compreender melhor quais pacientes apresentam maior risco de sangramento e como reduzir esse risco ao mesmo tempo em que se previne efetivamente o tromboembolismo. No entanto, não foram observados sangramentos fatais ou hemorragia intracraniana, apesar da elevada incidência de sangramentos gastrointestinais.
Além disso, a incidência de sangramento maior no grupo da edoxabana no presente estudo foi semelhante à observada em estudos anteriores que avaliaram eventos clínicos precocemente após substituição valvar por bioprótese. O tempo em faixa terapêutica no grupo da varfarina foi baixo (19,0%) neste estudo. Isso pode ser justificado pelo período instável imediatamente após a cirurgia, em que os cirurgiões tendem a subdosar os pacientes, de modo que os valores de INR ficam abaixo do ideal. O tempo reduzido em faixa terapêutica pode influenciar tanto a taxa de ocorrência de eventos embólicos quanto a de sangramentos. Contudo, essa subdosagem da varfarina reflete a situação clínica atual e ilustra precisamente o problema associado ao seu uso.
Vale destacar que o estudo apresenta várias limitações. Primeiro, o protocolo aberto pode ter introduzido viés. A varfarina deve ser administrada com ajustes de dose monitorados pelo INR, portanto, não foi possível cegar participantes ou médicos quanto ao grupo de tratamento.
Segundo, o momento de início da anticoagulação foi definido pelos cirurgiões, o que pode ter influenciado a incidência dos eventos clínicos.
Terceiro, a maioria dos pacientes (87%) foi submetida apenas à substituição da valva aórtica. Há diferenças inerentes na fisiopatologia e na arquitetura anatômica subjacente na dinâmica do fluxo após substituição por bioprótese em posição aórtica e mitral. Assim, a generalização dos resultados independentemente da posição valvar é limitada. Além disso, o estudo incluiu 13 pacientes submetidos a substituição concomitante de duas válvulas, que apresentam perfil clínico distinto daqueles submetidos apenas à substituição aórtica, com maior risco de morbidade e sangramento.
Quarto, a população era japonesa e é bem conhecido que a incidência de tromboembolismo é menor em japoneses em comparação com populações ocidentais.
Quinto, a análise não foi conduzida com um desenho formal de não inferioridade. Este estudo não realizou teste estatístico formal, mas comparou estimativas pontuais da diferença nas taxas de eventos entre os dois grupos. Contudo, o objetivo foi confirmar eficácia e segurança comparáveis entre edoxabana e varfarina, o que foi demonstrado pelos resultados.
Conclusão
A edoxabana parece ser uma alternativa potencial de terapia anticoagulante no período inicial após substituição valvar por bioprótese, principalmente se tratando da posição aórtica e sob monitorização rigorosa do risco de sangramento. Entretanto, o estudo possui várias limitações, baixo número de eventos e foi realizado apenas no Japão, o que restringe a aplicação prática desses resultados por ora.
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