As cardiopatias são uma das principais causas de morbimortalidade materna na gestação, além de aumentarem os riscos obstétricos e fetais. A forma mais comum é a doença hipertensiva, sendo as com maior letalidade a cardiomiopatia periparto, a dissecção aórtica e o IAM. As alterações hemodinâmicas causadas pela gestação e a restrição ao uso de alguns fármacos de ação cardiovascular trazem peculiaridades no tratamento e acompanhamento de gestantes cardiopatas. Por isso, há recomendações específicas no diagnóstico e tratamento de cardiopatias na gestação.
A European Society of Cardiology (ESC) publicou em 2018 uma revisão de sua diretriz sobre as diversas cardiopatias na gestação. Há, inclusive, uma descrição detalhada dos principais fármacos cardiológicos, o que pode ou não ser usado, e as precauções. Para quem quiser detalhes, sugerimos consultar o texto original. Aqui no Portal PEBMED trouxemos as principais mudanças de um modo prático para ajudar na sua tomada de decisão.
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Nas mulheres com cardiopatia conhecida, o ideal é a avaliação médica antes de engravidar, para ponderar sobre os riscos e benefícios da gestação. O DIU com progesterona e a camisinha são os métodos mais seguros para a contracepção. Por outro lado, nas mulheres que desejam realizar fertilização in vitro, a estimulação ovariana é contraindicada na mWHO III e IV e nas pacientes anticoaguladas (veja tabela abaixo).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs uma classificação que mostra, em ordem crescente, o risco materno ao engravidar.
mWHO I | mWHO II | mWHO II-III | mWHO III | mWHO IV | |
Diagnóstico
| Extra-sístoles | CIA ou CIV não corrigidos | Disfunção VE leve (45-60%) | Disfunção VE moderada (30-45%) | Hipertensão arterial pulmonar |
Lesões simples corrigidas, como CIA ou CIV | Fallot operado | Cardiopatia hipertrófica | Cardiomiopatia periparto recuperada (FE normal) | Disfunção grave VE (FE < 30%) | |
EP, ducto patente ou PVM leves | Arritmias supraventriculares | Lesões valvares moderadas* | Valva mecânica | Cardiomiopatia periparto com FE reduzida | |
Turner com aorta normal | Marfan com aorta normal | VD sistêmico com função boa | EM grave | ||
Valva aórtica bicúspide com aorta < 45 mm | Fontan sem complicações | EA grave sintomática | |||
Coarctação corrigida | Cardiopatia congênita cianótica | VD sistêmico com disfunção | |||
Defeito septo atrioventricular | EM moderada | Aorta > 50 mm ou > 45 mm (Marfan) | |||
EA grave assintomática | Ehlers-Danlos | ||||
Aorta 45-50 mm ou 40-45 mm (Marfan) | Coarctação grave | ||||
Taquicardia ventricular | Fontan com complicações | ||||
Risco | Ausente ou mínimo | Leve | Moderado | Alto | Muito alto |
Taxa de eventos cardiovasculares | 2,5-5,0% | 5,7-10,5% | 10-19% | 19-27% | 40-100% |
*EA, estenose aórtica; EM, estenose mital; EP, estenose pulmonar; PVM, prolapso valva mitral
A presença de cardiopatia deve ser suspeitada quando há algum sintoma, sinal ou achado de exame complementar alterado, sendo os mais comuns:
- Sintomas: dispneia, dor precordial, palpitações, lipotímia/síncope, “tonteira” e edema de membros inferiores;
- Sinais: alteração na FC e/ou PA, turgência jugular, bulha acessória, ritmo irregular ou em galope, hepatomegalia e edema periférico.
1- Frente à suspeição clínica, o médico dispõe de alguns exames complementares para serem utilizados
2- São seguros na gestação: eletrocardiograma e ecocardiograma
- Devem ser avaliados quanto ao risco x benefício:
- Teste ergométrico: o período ideal é no 2º trimestre e é realizado até 80% da FC máxima prevista.
- Raio-X tórax: usa radiação, mas a dose é muito baixa, e em casos extremos pode ser realizado com proteção/avental abdominal no 2º ou 3º trimestre.
- RM cardíaca: não há estudos concretos sobre segurança do gadolíneo. O período com menor risco para mangetismo é o 2º trimestre.
3- Evitados
- Cintilografia
- Coronariografia: só utilizada em condições de alto risco, como um IAM.
4- Avaliação Fetal
- Translucência
- Ecocardiograma fetal entre 19 e 22 semanas
- Dopplerfluxometria placentária no fim do segundo trimestre
E o parto?
Uma dúvida frequente do obstetra é se a cardiopatia contraindica o parto vaginal/normal ou se há recomendações específicas. O uso ou não de ocitocina também traz preocupações. A diretriz faz recomendações específicas para cada cenário clínico, mas de modo geral a cesárea tem preferência nas seguintes situações:
- Trabalho de parto em paciente com anticoagulação plena, na qual não foi feita suspensão prévia dos anticoagulantes;
- Pacientes mWHO IV, com destaque para hipertensão pulmonar, doenças da aorta (dilatação) e insuficiência cardíaca avançada.
Outros aspectos:
- A diretriz recomenda induzir parto com 40 semanas em todas as cardiopatas
- Em caso de parada cardíaca, o ideal é retirar o feto nos primeiros 4 min
- Ocitocina e misoprostol podem ser usados após o parto para reduzir sangramento
- Não há recomendação de antibiótico profilático com a finalidade específica de evitar endocardite infecciosa
Cardiopatias congênitas
O tratamento e o manejo são similares à mulher não-grávida. As cardiopatias com maior risco são as com hipertensão pulmonar, sendo que na síndrome de Eisenmenger, o risco materno é extremamente alto, e deve ser considerada a interrupção da gestação.
Qual a HAP que preocupa?
- PA média ≥ 25 mmHg
- Tipo 1
Qual o risco?
- 16-30% de mortalidade materna
- 1-30% de mortalidade fetal e neonatal
- O risco é maior no terceiro trimestre, parto e puerpério
O que fazer?
- Há evidências, ainda não concretas, que vale a pena anticoagular essas gestantes
- Antagonistas da endotelina são contraindicados
- Prefira sildenafil e nifedipino
- Prefira anestesia regional para evitar ventilação mecânica da anestesia geral
Doenças da Aorta
A síndrome de Marfan e a valva aórtica bicúspide são as duas patologias mais conhecidas e associadas com maior risco de dilatação, dissecção e ruptura da aorta torácica. Contudo, o risco existe em outras síndromes raras, como Ehlers-Danlos, e até em pessoas normais.
Qual a aorta que preocupa?
- > 40 mm em Marfan e > 45 mm nas demais.
Qual o risco?
- Risco dissecção 1-10% em Marfan e outras síndromes genéticas, mas <1% na valva aórtica bicúspide.
- O risco é maior no terceiro trimestre e puerpério imediato.
- A gestação é contraindicada se aorta > 45 mm em Marfan e > 50 mm na valva aórtica bicúspide.
O que fazer?
- A RM é método com melhor relação custo-benefício para acompanhamento.
- Há vários estudos com uso dos betabloqueadores (lembrando que evitamos atenolol na gestação).
- Parto com anestesia para evitar pico hipertensivo. Cesárea indicada no mWHO IV.
- Fazer cirurgia se aorta > 45 mm e/ou dilatando progressivamente. Segue os mesmo padrões da paciente não-grávida.
Lesões Valvares
As lesões regurgitantes em geral são bem toleradas, sendo o risco associado à presença de disfunção do VE. O manejo é o mesmo das não-grávidas. O que muda na gravidez são as lesões estenóticas e as pacientes com próteses mecânicas.
Estenose Mitral
Quem preocupa?
- Área valvar < 1,0-1,5 cm²
- NYHA > II
- PSAP > 30 mmHg
Qual o risco?
- 1-3% de mortalidade materna
- 5-30% complicações fetais
- 1-5% mortalidade fetal ou neonatal
O que fazer?
- Betabloqueadores e diuréticos para controle dos sintomas
- Antes de engravidar: comissurotomia percutânea se área valvar < 1,0 cm², mesmo assintomática
- Em quem já engravidou: comissurotomia percutânea se NYHA III ou IV e/ou PSAP > 50 mmHg, após 20ª semana de gestação
- Parto cesareo se NYHA III ou IV e/ou HAP associada
- Anticoagulação plena se:
-FA
-Remora
-AE > 60 ml/m²
-ICC
Estenose Aórtica
Quem preocupa?
- Valva bicúspide, pelo risco de dilatação e/ou dissecção da aorta
- Paciente sintomático com EA grave
Qual o risco?
- <1% de mortalidade materna
- 5-25% complicações fetais
- <5% mortalidade fetal ou neonatal
O que fazer?
- Se assintomática, pode engravidar, mesmo com EA grave;
- Tratamento clínico pouco eficaz. Há mínima experiência com TAVR;
- Cesarea indicada na EA grave sintomática (mWHO IV).
Próteses Mecânicas
Apesar da avaliação do funcionamento da valva ser fundamental, os principais problemas vêm da anticoagulação. Na TVP/TEP, as heparinas de baixo peso molecular (HBPM) têm ação anti-Xa mais previsível na gestação e funcionam bem. Mas as próteses valvares têm altíssimo risco de trombose e/ou embolia e nas grávidas as HBPM, como a enoxaparina, não funcionam tão bem. Para se ter uma ideia, há um risco de 5,8-7,4% de trombose valvar mesmo com HBPM plena no primeiro trimestre da gestação. A droga mais eficaz é a varfarina, mas ela é teratogênica e esse efeito é dose-dependente. O que fazer então? Não há consenso e a diretriz traz as seguintes opções:
- 1º trimestre: manter varfarina se dose < 5 mg/dia ou trocar para HBPM;
- 2º/3º trimestre: a preferência dos autores é varfarina;
- 36 semanas: trocar para heparina comum e programar parto eletivo.
As trocas sempre são recomendadas em hospital. Além disso, a tabela de INR alvo também é peculiar à gestação:
Sem Fator de Risco | 1 ou + Fator de Risco | |
Prótese Carbomedics, St.Jude ou Medtronic | 2,5 | 3,0 |
Outras próteses sem estudo | 3,0 | 3,5 |
Prótese antiga, como Starr-Edwards ou com bola/disco | 3,5 | 4,0 |
Fatores de risco: valva mitral ou tricúspide, tromboembolismo prévio, FA, estenose mitral associada, FE < 35%.
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