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Na década passada, foi proposta uma nova classificação das doenças imuno-mediadas com a inclusão das “doenças sistêmicas imuno-mediadas” (systemic immune-mediated disease ou SID), que passaria a incluir duas categorias: as doenças autoimunes, como LES e AR, e as doenças autoinflamatórias, como as doenças inflamatórias intestinais e a artrite idiopática juvenil, que estejam acometendo pelo menos dois sistemas ou órgãos. Contudo, em nosso meio, o termo mais geral “doença autoimune” continua predominando e se referindo a ambos os grupos. Assim trabalharemos nosso texto.
Tentar uma padronização no diagnóstico e tratamento do acometimento miocárdico nas SIDs é tarefa complexa, pois seria um “one-size-fits-all”, ou seja, não há como contemplar a variedade de doenças imunomediadas existentes. Por isso, a European Society of Cardiology publicou uma revisão com linhas gerais de manejo desses pacientes.
Diagnóstico
Na maioria das doenças, o acometimento miocárdico pode ser assintomático. Vale a pena o rastreamento universal, isto é, procurar cardiopatia em todo pacientes com SID? Essa resposta não está clara e depende do seu método de screening. A base da avaliação – história, exame físico e um ECG – é de mais fácil aplicação. O ecocardiograma já envolve custos e a ressonância então… Por isso, nossa dica é ficar de olho no acometimento miocárdico na doenças do Quadro 1 e considerar pelo menos um ECG. Quanto mais grave a apresentação da doença autoimune, mais chance de acometimento multiorgânico, e mais à fundo você deve ir na avaliação cardiovascular.
Quadro 1: doenças autoimunes nas quais cardiopatia é relativamente comum
- Lupus Eritematoso Sistêmico
- Artrite Reumatoide
- Esclerodermia
- Sarcoidose
- Churg-Strauss (granulomatose eosinofílica com poliangeíte)
- Wegener (granulomatose com poliangeíte)
Quando houver indícios de cardiopatia, o ecocardiograma é o método inicial de avaliação, pois permite informações precisas do miocárdio e endocárdio, os dois principais sítios de acometimento cardíaco na SID. O ideal é a agregação das avaliações mais modernas no ECO, incluindo função diastólica pelo doppler tecidual (E/E’, por exemplo) e o strain rate para função sistólica.
O próximo passo é a ressonância magnética, que funciona na prática como nosso padrão-ouro, permitindo avaliação de miocardite e diferenciação se o dano é isquêmico ou inflamatório. Como exemplo, o realce miocárdico tardio pelo gadolínio nas regiões subepicárdica e miocárdica correlaciona-se com atividade de doença na AR e na esclerodermia. O PET-CT também é útil na avaliação inflamatória, mas menos disponível em nosso meio.
Os biomarcadores são inespecíficos, mas mesmo assim úteis na avaliação clínica. O BNP e a troponina marcam lesão no miocárdio, principalmente na miocardite, e são úteis no diagnóstico e prognóstico. Mas atenção ao contrário: se troponina positiva sugere miocardiopatia, por outro lado pode haver miocardite com troponina negativa!
No artigo de revisão mencionado anteriormente, os autores tecem elogios à biópsia endomiocárdica, que permitiria a confirmação do diagnóstico de miocardite e a exclusão de causas infecciosas, o grande fantasma ao decidir iniciar imunossupressão. Os autores recomendam a realização do procedimento apenas em centro especializados e com no mínimo 3 amostras em sítios separados, enviadas tanto para patologia como congeladas a -80ºC para análise molecular (PCR). A taxa de complicações em grandes centros é estimada em < 1%.
Contudo, na vida real, o rendimento da biópsia às cegas não é tão bom, principalmente pelo falso-negativo (retira fragmentos de áreas sadias) e por achados inespecíficos (resposta inflamatória crônica), e hoje ela é reservada quando há suspeita de alguma doença cuja biópsia seja a única forma de confirmar o diagnóstico, como na miocardite idiopática de células gigantes. O mais comum é a doença cardíaca aparecer como um das manifestações da SID, o que facilita a definição de etiologia autoimune e a decisão pelo tratamento imunossupressor.
Outro aspecto importante no diagnóstico de cardiopatia na SID é a detecção de aterosclerose prematura. A atividade inflamatória crônica e o efeito colateral da imunossupressão, com destaque para o corticoide, aumentam a prevalência de placas de ateroma nas coronárias, mesmo em pacientes mais jovens e sem os fatores de risco tradicionais, como diabetes e tabagismo. Por isso, em especial no grupo das colagenoses (LES) e na artrite reumatoide, é importante excluir causa isquêmica.
Neste cenário, a investigação segue os moldes tradicionais, com o uso de testes funcionais (ex: cintilografia miocárdica com dipiridamol) ou anatômicos. Veja na figura abaixo uma sugestão de abordagem aos pacientes com SID e cardiopatia.

Tabela 1: dicas específicas para algumas doenças autoimunes
Doença | Dica |
Esclerodermia | Arritmias são comuns. Inclua um Holter 24h na sua avaliação. |
Sarcoidose | Arritmias são comuns. Inclua um Holter 24h na sua avaliação.
Bloqueio AV é a forma mais comum e muitos pacientes precisarão de marcapasso. Há estudos com desfibrilador implantável (CDI) quando o paciente sobrevive a morte súbita e/ou FV/TV e tem expectativa de vida boa (> 1 ano). |
Churg-Strauss | Mais comum no perfil eosinofilia + ANCA-negativo.
Pode haver endomiocardiopatia com trombose luminal. |
LES e AR | Além do acometimento direto pela doença, de natureza imunológica, esteja atento à doença coronariana por aterosclerose prematura acelerada. Isto é, pesquise isquemia miocárdica. |
Tratamento
Felizmente, se há dúvidas quanto ao rastreamento e melhor método diagnóstico, o tratamento é mais simples, pois na maioria das SIDs é realizado um ataque com pulsoterapia de metilprednisolona, seguido de prednisona dose imunossupressora e, a longo prazo, um poupador de corticoide. Os mais utilizados são a azatioprina, o micofenolato e a ciclofosfamida.
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