Durante visita pré-anestésica paciente encontrava-se sem queixas, em bom estado geral, lúcido e orientado no tempo e espaço, acianótico, anictérico, afebril, enchimento capilar satisfatório, eupneico e eucárdico. Mãe negava qualquer comorbidade, alergias e cirurgias prévias. Jejum de oito horas. Exames laboratoriais dentro dos limites da normalidade. Exame físico sem alterações. Realizado midazolan xarope como pré-anestésico e encaminhado ao centro cirúrgico.
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Paciente deu entrada no centro cirúrgico algo sonolento, porém bastante colaborativo. Foi realizado venóclise em MSD com jelco 20G e iniciado hidratação venosa com administração de Ringer Lactato e medicações como dipirona e zofran para analgesia e profilaxia de náuseas e vômitos pós-operatório respectivamente. Monitorizado com ECG, oximetria de pulso e pressão arterial não invasiva.
Sinais vitais: FC 98 bpm, PA 102 X 68 mmHg e SPO2 98% em ar ambiente.
Equipe anestésica optou por realização de anestesia geral com intubação traqueal como plano anestésico.
Após pré-oxigenação com O2 100% sob máscara, foi realizada indução com propofol, fentanil, succinilcolina e sevoflurano. Intubação realizada sem intercorrência na primeira tentativa e após confirmação com capnógrafo, acoplado ao respirador mecânico e realizado atracúrio como relaxante muscular.
Após alguns minutos paciente começou a apresentar aumento progressivo da ETCO2 sem relação com a ventilação, passando de 35 para 50 mmHg. Concomitante houve aumento significativo da frequência cardíaca e hipertensão arterial. Realizado várias tentativas de ajuste da ventilação mecânica e aprofundamento do plano anestésico, porém sem sucesso, quando também começou a apresentar diminuição da saturação de oxigênio. Optado por suspender o procedimento cirúrgico até estabilização do quadro.
Hipótese diagnóstica: hipercarbia após indução
Paciente pediátrico após indução anestésica com succinilcolina apresentando hipercapnia refratária e aumento da pressão arterial com taquicardia sem motivo aparente, deve-se pensar em um quadro de hipertermia maligna.
A hipertermia maligna é uma emergência anestésica que deve ser identificada e tratada rapidamente, pois tem característica de ser potencialmente fatal.
É uma doença genética autossômica dominante caracterizada por um quadro de hipermetabolismo desencadeado por alguns agentes anestésicos, principalmente succinilcolina. A mutação genética característica dessa patologia leva a um defeito na regulação do cálcio intracelular no retículo sarcoplasmático das células musculares. Alguns agentes anestésicos específicos ativam o receptor de rianodina causando uma liberação maciça e descontrolada de cálcio no citoplasma da célula muscular, isso acaba mantendo uma contração muscular constantes e levando a um aumento significativo do consumo de ATP, com hiperprodução de calor e acidose metabólica pelo acúmulo de ácido lático.
Caso não seja diagnosticada a tempo pode evoluir para um quadro de rabdomiólise com liberação de mioglobina e potássio, gerando hipercalemia com arritmias cardíacas, mioglobinúria e acidose metabólica severa.
O único tratamento da hipertermia maligna é a administração de Dantrolene que deve sempre estar disponível em todos os centros cirúrgicos.
Além do Dantrolene, medidas de suporte como interrupção imediata dos anestésicos, oxigenação a 100%, resfriamento ativo do paciente, correção da acidose e controle da hipercalemia devem ser realizadas.
O paciente em questão foi medicado com Dantrolene, além das medidas de suporte, apresentando estabilização hemodinâmica e melhora da hipercapnia. Foi encaminhado a unidade de terapia intensiva, permanecendo por 48 horas e depois tendo alta para o quarto. Permaneceu assintomático com alta hospitalar e orientado a realizar investigação genética para hipertermia maligna para um diagnóstico de certeza, porém a família não retornou as consultas subsequentes.
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