O M. tuberculosis, a coloração de Ziehl-Neelsen e a interpretação do BAAR
A tuberculose ainda é um problema de saúde pública mundial, uma doença infectocontagiosa, causada, principalmente, pelo Mycobacterium tuberculosis.
No dia 24 de março, anualmente, é comemorado o “Dia Mundial de Combate à Tuberculose”, data criada em 1982 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em celebração aos 100 anos da descoberta da bactéria causadora da tuberculose (Mycobacterium tuberculosis), em 1882, pelo médico Robert Koch. De grande importância, essa data ajuda a divulgar e sensibilizar toda a sociedade e os agentes públicos sobre os enormes desafios existentes para o enfrentamento da tuberculose.
O Brasil é, de acordo com dados da OMS, um dos 30 países com alta carga de tuberculose e tuberculose + HIV (coinfecção), que são considerados como prioritários para o controle da doença. Somente esses 30 países da lista da OMS respondem por cerca de 90% de todos os casos de tuberculose no mundo.
Apesar de ser uma doença milenar, com diagnóstico clínico/laboratorial/radiológico simples, de tratamento amplamente disponível, barato (gratuito no Sistema Único de Saúde – SUS) e eficaz, a tuberculose pulmonar ainda é um grave problema social e de saúde pública no Brasil e no mundo, sobretudo em regiões de baixo desenvolvimento socioeconômico.
Ela é uma doença bacteriana infectocontagiosa, cujo agente etiológico principal é o Mycobacterium tuberculosis, também conhecido como bacilo de Koch (BK), que acomete, em especial (mas não exclusivamente), os pulmões.
É transmitida primariamente por gotículas respiratórias infectadas (de 1 a 10 micrômetros de diâmetro), expelidas por um paciente bacilífero previamente infectado, que se propagam pelo ar, até serem inaladas por um indivíduo suscetível. Uma outra forma possível de transmissão, bem menos frequente, se dá pela inoculação direta de secreções respiratórias através da pele não íntegra.
O complexo Mycobacterium tuberculosis
O complexo Mycobacterium tuberculosis (MTBC) é formado por algumas espécies de micobactérias que, em maior ou menor escala, possuem a capacidade de ser transmitidas de pessoas para pessoas, característica que as fazem importantes epidemiologicamente.
Essas micobactérias são os agentes etiológicos da tuberculose humana, representadas pelo Mycobacterium tuberculosis (de longe a mais comum em nosso meio), Mycobacterium africanum, Mycobacterium bovis, cepa de M. bovis Bacilo de Calmette-Guérin (BCG), Mycobacterium pinnipedii, Mycobacterium microti, Mycobacterium canettii e Mycobacterium caprae.
Veja também: Tuberculose: ainda temos esse problema? [vídeo]
Existem outras micobactérias que não pertencem ao MTBC, chamadas de “micobactérias não tuberculosas (MNT)” ou “micobactérias outras que não bacilos da tuberculose”, já que são diferentes do bacilo de Koch (BK).
Elas podem ser divididas de acordo com o seu crescimento em meio sólido e na pigmentação de suas colônias, conforme proposto por Runyon em seu sistema de classificação: fotocromogênicas, escotocromogênicas, não fotocromogências e de crescimento mais rápido. Uma outra forma de classificação, clinicamente mais significativa, tem como base a sua patogenicidade em humanos.
Alguns exemplos de micobactérias não tuberculosas (MNT) são elencados a seguir: complexo Mycobaterium avium (MAC), Mycobacterium kansasii, Mycobacterium marinum, Mycobacterium szulgai, Mycobacterium ulcerans, Mycobacterium haemophilum, dentre outras. O Mycobacterium leprae (agente etiológico da hanseníase), também é considerada uma micobactéria não tuberculosa, porém difere das demais pelo fato de, até hoje, ainda não ter sido isolada/cultivada in vitro.
Diagnóstico bacteriológico e o método de Ziehl-Neelsen
Algumas bactérias não se coram adequadamente pelos métodos tradicionais de coloração (ex.: Gram). Dessa forma, o método de Ziehl-Neelsen, proposto por Franz Ziehl e aprimorado por por Friedrich Neelsen ainda no século XIX, é capaz de dividir as bactérias em dois grandes grupos: as álcool-ácido-resistentes (ex.: micobactérias) e as não álcool-ácido-resistentes.
O método de coloração de Ziehl-Neelsen é utilizado para a detecção dos bacilos álcool-ácido-resistentes (BAAR). A alta concentração de ácidos micólicos em sua parede celular, faz com que a estrutura dessas bactérias tenha propriedades hidrofóbicas, tornando-as evidentes apenas quando submetidas a técnicas de colorações especiais. Morfotintorialmente, as micobactérias apresentam-se na forma de bacilos, sutilmente curvos ou retos, álcool-ácido-resistentes.
Técnicas de pré-tratamento da amostra, descontaminação e concentração {ex.: hipoclorito de sódio, N-acetil-L-cisteína (NALC)-hidróxido de sódio}, também podem ser utilizadas para aumentar a sensibilidade da coloração.
Outros métodos de coloração, como o de Kinyoum, e os com melhor sensibilidade, representados pelos corantes fluorocromáticos (ex.: auromina-O e auramina-rodamina), também são capazes de detectar as bactérias álcool-ácido-resistentes, embora sejam pouco empregados em nosso meio.
Passo a passo da coloração clássica de Ziehl-Neelsen
- Um esfregaço do material a ser investigado é colocado em uma lâmina de vidro para microscopia, com posterior fixação com calor;
- A fucsina de Ziehl (corante avermelhado) é então adicionada por toda a lâmina, aquecendo-a até a emissão de vapores, repetidamente por 5 minutos, (deve-se tomar o cuidado para não ferver o corante). Nessa etapa, todas as bactérias presentes na amostra são coradas em vermelho;
- O material então é lavado com água corrente, adicionando em seguida o substrato para descoloração (solução de ácido clorídrico 3% em álcool etílico), lavando-se a lâmina em seguida. Agora, as bactérias álcool-ácido-resistentes permanecerão vermelhas (já que resistem à descoloração), enquanto que as demais não conseguem reter o corante, ficando incolores;
- Adiciona-se à lâmina uma solução de azul de metileno (corante azulado) por três minutos. Nessa fase, as bactérias que antes estavam incolores (não álcool-ácido-resistentes) coram-se de azul;
- Novamente lava-se o material com água corrente, com posterior secagem do mesmo. Em uma objetiva (planacromática com mola) de grande aumento (100X) sob imersão em óleo, observa-se a lâmina a procura de bacilos retos ou ligeiramente curvados, avermelhados, com 0,2 a 0,6 micrômetros de largura e 1 a 10 micrômetros de comprimento, se mostrando como faixas, contas ou filamentos.
Existe uma convenção que o analista do Laboratório Clínico utiliza, após a leitura microscópica da lâmina, para relatar a bacterioscopia dos BAAR nos laudos laboratoriais (em número de bacilos por campo, em 100, 50 ou 20 campos microscópicos examinados – c.m.e.), com a interpretação representada a seguir:
- Ausência de BAAR em 100 c.m.e.: Negativo;
- Quando são encontrados de 1 a 9 BAAR, em 100 c.m.e.: Relata-se a quantidade de BAAR encontrada;
- Quando são encontrados de 10 a 99 BAAR, em 100 c.m.e.: Positivo +;
- Quando são encontrados, em média, de 1 a 10 BAAR por campo, nos primeiros 50 c.m.e.: Positivo ++;
- Quando são encontrados, em média, mais de 10 BAAR por campo, nos primeiros 20 c.m.e.: Positivo +++.
Saiba mais: Clinical Drops: como diagnosticar precocemente a tuberculose pulmonar ativa?
Considerações finais
Um dos principais pilares para o adequado controle da tuberculose pulmonar baseia-se no seu diagnóstico laboratorial precoce, bem como o acompanhamento da eficácia do tratamento e a eventual ocorrência de resistência às drogas do esquema terapêutico de primeira linha.
A despeito do desenvolvimento de colorações mais sensíveis, da disponibilidade de identificação bacteriana por culturas/testes bioquímicos, técnicas para o diagnóstico da infecção latente (ILTB) e de métodos diagnósticos moleculares para a detecção rápida e direta do DNA do complexo Mycobacterium tuberculosis e de uma eventual resistência à Rifampicina (ex.: sistema GeneXpert® MTB/RIF), a coloração de Ziehl-Neelsen para a avaliação da presença dos BAAR na amostra ainda é muito importante e largamente utilizada em nosso meio.
É uma forma rápida, simples, barata e amplamente disponível para a identificação e monitoramento do tratamento da tuberculose pulmonar, apresentando grande relevância clínico-epidemiológica para o adequado controle e enfrentamento dessa doença.
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