De acordo com um estudo publicado no periódico The New England Journal of Medicine, o uso de profilaxia antibiótica secundária reduziu o risco de progressão da cardiopatia reumática latente (CRL) em dois anos entre pacientes pediátricos de 5 a 17 anos de idade.
A cardiopatia reumática (CR) é uma doença cardíaca valvular crônica causada pela febre reumática (FR), que se desenvolve após a infecção por Streptococcus pyogenes não tratada. Estima-se que mais de 40,5 milhões de pessoas em todo o mundo vivam com CR e que, a cada ano, ocorram, aproximadamente, 306.000 mortes devido a essa comorbidade. A profilaxia antibiótica secundária é a pedra angular do tratamento. A literatura mostra que a penicilina G benzatina intramuscular (IM) é mais eficaz do que agentes antibióticos orais na prevenção da faringite estreptocócica e seu uso está associado a uma menor incidência de recorrência de FR. Além disso, estudos sugerem que a profilaxia permite a regressão do dano valvar e pode prevenir o óbito pela cardiopatia.
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O conceito de CRL é relativamente novo. Uma revisão sistemática e meta-análise de estudos em vários países mostrou uma prevalência mundial combinada de CRL de 1,3%, sendo que a triagem ecocardiográfica detecta CR em um estágio latente inicial. O objetivo do estudo foi avaliar se a profilaxia antibiótica secundária é eficaz na prevenção da progressão dessa doença.
Metodologia
Os pesquisadores realizaram um ensaio clínico randomizado e controlado de profilaxia antibiótica secundária em crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade com CRL. Os participantes foram designados aleatoriamente para receber penicilina G benzatina IM a cada 4 semanas por dois anos ou nenhuma profilaxia. Todos os participantes foram submetidos a um ecocardiograma (ECO) no início do estudo e dois anos após a randomização. As alterações da linha de base foram julgadas por um painel cujos membros não tinham conhecimento das atribuições do grupo de ensaio. O desfecho primário foi a progressão da CRL em dois anos ao ECO.
O estudo foi conduzido em Gulu, Uganda, de julho de 2018 a outubro de 2020, e foi denominado Gwoko Adunu pa Lutino (GOAL), que significa “proteger o coração de uma criança”.
Os participantes que tiveram um novo diagnóstico de CRL foram abordados para inclusão no estudo. Os participantes com doença moderada ou grave não eram elegíveis; entretanto, o tratamento profilático foi iniciado e esses pacientes foram encaminhados para acompanhamento contínuo, de acordo com as recomendações padrão.
Foram excluídos: indivíduos com história de FR, CR ou outra doença cardíaca estrutural ou funcional; pacientes alérgicos à penicilina; pacientes com predisposição para sangramento; ou pacientes que estavam recebendo profilaxia com antibiótico para outras indicações. Uma segunda rodada de exclusão ocorreu após a randomização, quando um painel de consenso julgou os ECO confirmatórios que haviam sido obtidos na inscrição.
Resultados
Entre 102.200 crianças e adolescentes que realizaram ECO de triagem, 3327 foram avaliados inicialmente como portadores de CRL e 926 dos 3327 posteriormente receberam um diagnóstico definitivo com base no ECO confirmatório e foram considerados elegíveis para o estudo.
O consentimento ou assentimento para a participação foi fornecido para 916 indivíduos e todos foram submetidos à randomização; 818 participantes foram incluídos na análise de intenção de tratar modificada e 799 (97,7%) completaram o ensaio: 399 no grupo “profilaxia” e 400 no grupo “controle” Entre os 19 participantes (2,3%) que descontinuaram o estudo antes do tempo, 4 perderam o acompanhamento, 11 solicitaram a retirada do estudo e 4 morreram de causas não relacionadas à pesquisa.
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Entre os 399 participantes no grupo ”profilaxia” que foram incluídos nas análises de intenção de tratar modificadas e que completaram o ensaio, um total de 10.284 das 10.374 injeções programadas (99,1%) foram administradas, com 10.250 (98,8%) administradas dentro da janela aceitável. Das 90 injeções perdidas, 77 foram perdidas no início da pandemia de Covid-19, quando todo o transporte foi interrompido abruptamente. Entre todos os participantes da população com intenção de tratar modificada, o uso de antibióticos antiestreptocócicos para outras indicações que não a CRL foi semelhante nos dois grupos; 252 participantes (61,6%) no grupo “profilaxia” receberam 579 cursos de tratamento, e 230 participantes (56,2%) no grupo “controle” receberam 571 cursos. Não foram identificados casos de suspeita de FR.
A idade média dos participantes do grupo “profilaxia” foi 12,6 anos e do grupo “controle” foi de 12,5 anos. A pontuação no índice WAMI (água e saneamento, bens, educação materna e renda familiar – water and sanitation, assets, maternal education, and household income) foi de 0,3% em ambos os grupos. O índice WAMI é uma medida de status socioeconômico; os escores variam de 0 a 1, com escores mais baixos indicando pior status.
Um total de 3 participantes (0,8%) no grupo “profilaxia” teve progressão ecocardiográfica em dois anos, em comparação com 33 (8,2%) no grupo “controle” (diferença de risco, -7,5 pontos percentuais; intervalo de confiança de 95%, -10,2 a – 4,7; P < 0,001). Dois participantes no grupo “profilaxia” tiveram eventos adversos graves que foram atribuíveis ao recebimento da profilaxia, incluindo um episódio de reação anafilática leve (representando < 0,1% de todas as doses administradas de penicilina benzatina).
Conclusão
No estudo GOAL, a profilaxia antibiótica secundária reduziu o risco de progressão da CRL em crianças e adolescentes em dois anos. Embora mais pesquisas sejam necessárias para avaliar a implementação no mundo real, a triagem de base populacional e o início da profilaxia podem vir a ser componentes integrantes de planos de ação para CR previstos pela Assembleia Mundial da Saúde em 2017.
Comentário
Infelizmente, mesmo com todo o avanço da Medicina do século XXI, muitas doenças preveníveis ainda são responsáveis por uma expressiva parcela dos óbitos infantis. Esse importantíssimo estudo demonstrou que o uso de um medicamento barato e que pode ser obtido facilmente pode prevenir a progressão da CRL, evitando formas graves que requeiram cirurgia, que, infelizmente, ainda não é acessível a muitas populações em todo o planeta.
Referências bibliográficas:
- Beaton A, Okello E, Rwebembera J, et al. Secondary Antibiotic Prophylaxis for Latent Rheumatic Heart Disease [published online ahead of print, 2021 Nov 13]. N Engl J Med. 2021. doi: 10.1056/NEJMoa2102074.
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