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Reumatologia26 março 2024

Diagnóstico e manejo das vasculites associadas ao ANCA

A fisiopatologia não é totalmente conhecida, mas existe a participação importante dos neutrófilos, ativados por citocinas, combinada com a ativação da cascata do complemento. 
Por Gustavo Balbi
A granulomatose com poliangiíte (GPA), a poliangiíte microscópica (MPA) e a granulomatose eosinofílica com poliangíite (GEPA) são vasculites sistêmicas incluídas no grupo das vasculites associadas ao ANCA (anticorpos contra citoplasma de neutrófilos) (AAV). Por apresentar características clínicas e fisiopatogênicas distintas das demais, a GEPA é frequentemente estudada em separado (principalmente em ensaios clínicos).  A fisiopatologia desse grupo de doenças não é totalmente conhecida, mas existe a participação importante dos neutrófilos, ativados por citocinas, combinada com a ativação da cascata do complemento.  Por se tratar de doenças potencialmente graves, o uso intensivo de terapias imunossupressoras é necessário em grande parte dos casos, visando a redução do dano provocado pelo processo inflamatório não controlado. Mesmo com os avanços recentes, a mortalidade dos pacientes com AAV é cerca de 2,3 vezes a da população geral. Sendo assim, o diagnóstico precoce e o tratamento adequado são fundamentais para melhorar o prognóstico desses casos.  Diante de um quadro com alta probabilidade pré-teste, a presença de ANCA com especificidade antigênica para a proteinase 3 (PR3) ou mieloperoxidase (MPO) reforça o diagnóstico de GPA e MPA, respectivamente. Apesar disso, alguns casos de AAV podem ser ANCA negativos. O subtipo de ANCA nos auxilia na predição de fenótipo, curso da doença, associações genéticas, padrões de alterações de biomarcadores, resposta ao tratamento com rituximabe e comorbidades.   

Diagnóstico 

O diagnóstico das AAV se baseia em dados clínicos, laboratoriais, de imagem e histopatológicos. Existe significativo atraso no diagnóstico das AAV em grande parte dos casos (cerca de 60%), com média de 6 meses entre o início dos sintomas e o diagnóstico correto. Isso pode variar conforme o padrão do acometimento: pacientes com manifestações indolentes localizadas (trato respiratório superior e inferior) geralmente são ANCA negativos e não apresentam alterações específicas nos exames de imagem; desse modo, há um maior atraso no diagnóstico. Ao contrário, pacientes com quadros graves de síndrome pulmão-rim geralmente apresentam um diagnóstico mais acelerado.  Na avaliação inicial, é fundamental que sejam avaliadas a extensão da doença e seu potencial de colocar órgãos nobres e até mesmo a vida do paciente em risco. Isso irá determinar a intensidade do tratamento, de modo a evitar danos pela doença. Esforços multidisciplinares são importantes para que se chegue ao diagnóstico o mais rápido possível.  As manifestações clínicas são uma combinação de sintomas sistêmicos, com fenômenos vasculíticos (vasculite predominantemente de pequenos vasos, porém podendo acometer vasos de médio calibre) e granulomatosos (esses últimos presentes na GPA, porém ausentes na MPA. Geralmente se manifestam com comprometimento do trato respiratório superior e inferior, além de região retro-orbitária, com a formação de granulomas que promovem inflamação e efeito de massa local). Dentre as manifestações que merecem destaque, na GPA ou vasculites PR3-ANCA, as manifestações constitucionais e otorrinolaringológicas são as mais frequentes; já no caso da MPA ou vasculites MPO-ANCA, as mais frequentes são as constitucionais e as renais (podendo evoluir com glomerulonefrite rapidamente progressiva). A presença de padrão tomográfico compatível com pneumonia intersticial usual é específico da MPA/MPO-ANCA, assim como a presença de lesões cavitadas é específica da GPA/PR3-ANCA. Como mencionado previamente, a síndrome pulmão-rim (que no seu extremo de gravidade se manifesta como capilarite pulmonar com hemorragia alveolar e glomerulonefrite rapidamente progressiva) também traz uma maior especificidade para o diagnóstico desse grupo (sendo mais frequente na MPA do que na GPA). Diversas deformidades crônicas podem decorrer das AAV, como perfuração de septo nasal e nariz em sela (GPA/PR3), escleromalácia perfurante (ambas), proptose/exoftalmia, estenose subglótica com rouquidão (GPA/PR3), entre outras. Por serem doenças com características bastante heterogêneas, virtualmente qualquer órgão ou sistema do corpo pode ser acometido.  Com relação aos exames laboratoriais, valores de VHS e PCR estão marcadamente aumentados na grande parte dos pacientes. A procalcitonina encontra-se em níveis normais na ausência de processos infecciosos concomitantes. Podemos encontrar também anemia da inflamação, leucocitose e plaquetose.  Os padrões de positividade citoplasmático (ANCA-c) e perinuclear (ANCA-p) por imunofluorescência apresentam valores preditivos positivos menores que a identificação de PR3-ANCA e MPO-ANCA por imunoensaios. Dessa maneira, a investigação primária começa pela solicitação de PR3-ANCA e MPO-ANCA. Caso esses exames venham negativos ou inconclusivos diante de um caso com alta suspeição, o ANCA por imunofluorescência pode ser solicitado. Positividade isolada de ANCA sem especificidade para PR3 ou MPO sugerem presença de mímicos das AAV (vide 'Diagnóstico diferencial'). Nas AAV, existe uma grande correlação entre o ANCA-p e o MPO-ANCA e o ANCA-c e o PR3-ANCA; diante de um quadro discordante ou com dupla positividade, devemos nos atentar para a possibilidade da condição ser induzida por drogas.  Dentre os outros exames a serem solicitados, temos: sorologias virais (HIV, HBV e HCV), VDRL, EAS e proteinúria, imagem (geralmente TC) conforme o sítio acometido, entre outros. A biópsia de órgãos acometidos é o padrão-ouro para o diagnóstico preciso, mas nos casos em que o diagnóstico é óbvio, podem ser prescindidas, principalmente se muito invasivas; a biópsia renal pode ser útil na avaliação prognóstica desses pacientes.   

Diagnóstico diferencial

A GEPA faz parte do grupo das AAV. No entanto, o ANCA só é identificado em 30-50% dos casos (geralmente MPO-ANCA). Devido à sua diferença significativa em termos de tratamento, a GEPA deve ser diferenciada da GPA, para que não ocorram erros de prescrição.  Sempre que um diagnóstico sindrômico de uma vasculite é realizado, é fundamental excluirmos causas secundárias/mímicos, como lúpus eritematoso sistêmico, outras doenças difusas do tecido conjuntivo, infecções virais, endocardite infecciosa, hanseníase, leptospirose, malignidades, uso de cocaína contaminada por levamisol, uso de antitireoidianos (principalmente o propiltiouracil, mas também o metimazol), hidralazina, entre outros.  No caso da cocaína contaminada pelo levamisol, PR3-ANCA pode ser encontrado com frequência, porém o MPO-ANCA é raro. Nas vasculites induzidas por outras drogas, é frequente a presença de dupla positividade para PR3-ANCA e MPO-ANCA.  É importante destacar a sobreposição frequente entre a doença da membrana basal glomerular e as AAV (até 40% dos casos).   

Tratamento - Indução de remissão

1) Regimes contendo ciclofosfamida 

A ciclofosfamida é um agente alquilante altamente tóxico. No início do estudo das AAV, a ciclofosfamida foi responsável por melhorar o prognóstico desse grupo de doenças, que anteriormente era invariavelmente fatal.  No entanto, foi observado que a recorrência nos pacientes que foram induzidos com ciclofosfamida e mantidos com azatioprina era frequente (40% no grupo que recebeu ciclofosfamida venosa no esquema do CYCLOPS e 21% no grupo que recebeu ciclofosfamida oral) e que a dose acumulada de corticoide foi elevada nos usuários da ciclofosfamida.  Mais recentemente, o uso de esquemas contendo rituximabe vem ganhando preferência de diversas sociedades internacionais, uma vez que seu perfil de segurança é melhor. Caso o uso de ciclofosfamida seja feito, a relação de risco-benefício deve ser pesada e deve-se dar preferência por esquemas curtos (por exemplo 3 meses), evitando-se os esquemas prolongados eventualmente utilizados no CYCLOPS. 

2) Regimes contendo rituximabe 

O RAVE foi o primeiro estudo a comparar o uso do rituximabe com ciclofosfamida e encontrou que o rituximabe atingiu a margem de não inferioridade, com um perfil de segurança melhor. No entanto, os dados são limitados para pacientes com creatinina >4 mg/dL, uma vez que esses pacientes foram excluídos por orientação do board desse estudo. Ainda assim, é o esquema preferido pela maioria dos guidelines internacionais. 

3) Avacopan 

O avacopan é uma pequena molécula que inibe o receptor do C5a (C5aR1). Ele recebeu aprovação do FDA para o tratamento das AAV após o estudo ADVOCATE, que demonstrou a não inferioridade de um esquema de tratamento de desmame rápido de prednisona + avacopan versus um esquema de desmame lento de prednisona. Com efeito, as doses acumuladas no grupo avacopan foi menor do que no grupo com desmame lento de prednisona. Além disso, foi observado que a melhora da função renal foi ligeiramente maior no grupo que recebeu o avacopan.  Desse modo, o avacopan parece uma alternativa para pacientes com doença renal avançada e nos quais o uso de corticoide é altamente desencorajado. Existem perspectivas de que o medicamento deve ser trazido para o Brasil, porém parece que o custo ainda será um limitante. 

4) Plasma exchange/plasmaférese 

Os resultados do MEPEX (publicados em 2007) mostraram uma redução no risco de doença renal em estágio terminal em 12 meses. No entanto, a letalidade foi alta nos dois grupos. Pacientes com hemorragia alveolar com necessidade de ventilação mecânica foram excluídos.  Posteriormente, o PEXIVAS não demonstrou diferenças significativas nos desfechos primários compostos de doença renal em estágio terminal ou morte. Apesar disso, uma série de limitações do desenho do estudo não permite que sejam obtidas respostas conclusivas sobre o uso da plasmaférese nesse contexto.  Uma metanálise que incluiu dados de quase 4 décadas de uso da plasmaférese em pacientes com creatinina ≥3,4 mg/dL identificou uma menor probabilidade de desenvolvimento de doença renal em estágio terminal após 1 ano do tratamento. Também foi demonstrado um risco aumentado de complicações infecciosas relacionadas à plasmaférese.  Como as evidências são conflitantes e todos os estudos apresentados apresentam significativas limitações, o papel da plasmaférese ainda é motivo de grandes  debates nas AAV. 

5) Metotrexato 

Com a aprovação do rituximabe para o tratamento das AAV, o uso do metotrexato no tratamento de indução da GPA localizada, sem risco de perda de função de órgão nobre ou sem risco de morte tem se reduzido nos centros onde existe acesso ao rituximabe. Ainda assim, ele pode ser utilizado nos casos em que outros tratamentos são contraindicados, não desejados, não acessíveis ou não tolerados. O metotrexato não deve ser utilizado por pacientes com clearance de creatinina <30 mL/min, pelo risco de toxicidade. 

6) Comentário adicional 

Pacientes com alto grau de imunossupressão (corticoterapia em altas doses + rituximabe ou ciclofosfamida) devem receber profilaxia de Pneumocystis jirovecii com sulfametoxazol+trimetoprima.   

Tratamento - manutenção de remissão

Com base nos dados do MAINRITSAM 1 e RITAZAREM, desde 2021, o rituximabe é considerada a droga de escolha para manutenção de remissão pela ACR, Vasculitis Foundation e EULAR. As taxas de manutenção de remissão com o rituximabe foram superiores à azatioprina. Um comentário relevante é que o uso de rituximabe pode impactar negativamente os esforços de vacinação, uma vez que ele inibe a produção de anticorpos através da inibição dos linfócitos B. Além disso, os pacientes podem apresentar hipogamaglobulinemia, o que pode levar a infecções de repetição e necessitar de tratamento com reposição de imunoglobulina.  Caso haja contraindicação ao uso do rituximabe, a azatioprina é a droga de segunda linha para manutenção de remissão nas AAV. A azatioprina é muito importante no tratamento de pacientes com GPA que desejam gestar ou estejam grávidas, uma vez que seu uso é seguro durante a gestação.  Com relação às doses de corticoide, existe uma tendência global da utilização de esquemas com doses menores e reduções mais rápidas, conforme o desenho do estudo PEXIVAS. 
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Referências bibliográficas

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