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Ortopedia12 dezembro 2025

Violência doméstica: oportunidades perdidas na ortopedia

Estudo revelou que a ortopedia identifica apenas 0,3% dos casos de violência doméstica, apesar de ser porta frequente de entrada de vítimas.
Por Rafael Erthal

A violência doméstica (VD) vem se tornando um enorme problema de saúde pública, que se manifesta de modo silencioso e muitas vezes não é percebida pelos profissionais de saúde que avaliam as vítimas em muitos dos casos.  

Sabemos que suas manifestações físicas frequentemente incluem lesões musculoesqueléticas, tornando os serviços de ortopedia uma das primeiras portas de chegada para essas vítimas. No entanto, será que nós, ortopedistas, estamos realmente preparados para identificar e intervir nesses casos? 

Um estudo retrospectivo realizado por pesquisadores americanos e publicado em novembro de 2025 na revista científica “JBJS Open Access”, avalia essa questão. A pesquisa teve três objetivos principais: educar sobre a prevalência e manifestações da VD, investigar os padrões de encaminhamento de diferentes departamentos para os DAIPs e caracterizar os casos de VD identificados especificamente por integrantes do departamento de ortopedia.  

Métodos 

A investigação analisou os padrões de encaminhamento para Programas de Intervenção em Abuso Doméstico (DAIPs) ao longo de 24 anos em dois grandes centros de trauma de nível 1. 

Quais foram os resultados mais alarmantes? 

A análise incluiu 11.227 pacientes encaminhados aos DAIPs e revelou uma disparidade chocante. Enquanto a sala de emergência (29,3%), o departamento de saúde comportamental (18,2%) e de obstetrícia/ginecologia (8,4%) foram as principais fontes de encaminhamento, o departamento de ortopedia contribuiu com apenas 0,3% dos encaminhamentos, totalizando apenas 30 pacientes e apresentando a taxa mais baixa entre todas as especialidades incluídas no estudo. 

Dentro da ortopedia, a esmagadora maioria (93,3%) dos encaminhamentos foi feita por assistentes sociais, e não por médicos. Isso sugere uma dependência excessiva de uma única função na equipe, em contraste com outras especialidades, onde os próprios médicos desempenham um papel mais ativo. 

Como se caracterizaram os casos identificados pela ortopedia? 

Dos 30 pacientes encaminhados, a maioria (83,3%) era do sexo feminino. 53,3% apresentavam uma lesão musculoesquelética diretamente relacionada ao abuso, incluindo fraturas de alta energia, como fraturas subtrocantéricas, do planalto tibial bicondilares e fraturas expostas da tíbia. O restante dos casos foi identificado durante consultas eletivas destacando que a VD pode ser identificada mesmo na ausência de um trauma agudo. 

Os fatores que levaram à identificação foram variados: mecanismo de lesão inconsistente com o padrão da fratura (30%), interferência do agressor no cuidado (26,7%), preocupações suspeitas com a recuperação pós-operatória (16,7%) e divulgação explícita pelo paciente (23,3%). 

Por que isso representa uma oportunidade perdida? 

O estudo revela que mais de 75% dos pacientes que relataram VD haviam tido interação apenas com membros do departamento de ortopedia nos 6 meses anteriores à revelação. Isso nos coloca em uma posição estratégica na qual é possível identificar e iniciar o suporte a essas vítimas antes que seja tarde. A baixa taxa de encaminhamento direta por ortopedistas pode guardar relação com o alto volume de consultas, um possível desconforto com o tema e a falta de treinamento e percepções equivocadas sobre a prevalência da VD na nossa população. 

Qual é o impacto da identificação? 

Quando a VD foi identificada, as intervenções foram concretas e impactantes: envolvimento da segurança do paciente (16,7%), alteração do plano de cuidado (23,3%) e facilitação de pedidos de auxílio governamental (23,3%). Além disso, mais da metade dos pacientes foi envolvida em programas de apoio e proteção por 6,8 anos após o encaminhamento, demonstrando o profundo impacto positivo de uma intervenção adequada. 

Qual é o caminho a seguir na prática? 

Esse estudo serve como um alerta crucial. A ortopedia, como especialidade que frequentemente testemunha as consequências físicas da VD, não pode mais ser um ponto cego no sistema de apoio às vítimas.  

Está em nosso poder, e é nossa responsabilidade ética, transformar essas oportunidades perdidas em portas de entrada para segurança e suporte. A integração de ferramentas de inteligência artificial no prontuário eletrônico é apontada como uma estratégia promissora para facilitar uma triagem eficiente e direcionada para detectar alguns casos que não são percebidos

Autoria

Foto de Rafael Erthal

Rafael Erthal

Conteudista do Afya Whitebook desde 2017 ⦁  Residência em Ortopedia e Traumatologia pelo INTO ⦁  Especialista em cirurgia de joelho ⦁  Graduação em Medicina pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

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