Na artroscopia, para operar com conforto é preciso enxergar bem. Sangramentos durante a cirurgia, mesmo pequenos podem dificultar a visualização da articulação, transformando um procedimento preciso em uma tarefa frustrante e demorada.
A lógica por trás do uso do ácido tranexâmico (ATNX) é atraente e clara: se a medicação é capaz de reduzir o sangramento durante cirurgias de artroplastia e tem seu uso já consagrado, esse efeito poderia também ocorrer durante cirurgias artroscópicas? Esse benefício é ainda mais atraente na artroscopia do quadril, que diferente da abordagem em outras regiões como joelhos ou tornozelos, não possibilita o uso de isquemia em virtude da localização mais proximal.
Um recente estudo comparando o uso de ácido tranexâmico com placebo foi conduzido em Nova York no Hospital for Special Surgery e publicado em agosto deste ano na revista científica “Arthroscopy: The Journal of Arthroscopic and Related Surgery”.
Como o estudo foi feito?
Os pesquisadores decidiram testar essa ideia da forma mais rigorosa possível.
Foi desenhado um ensaio clínico randomizado duplo-cego. Isso significa que nem o paciente, nem o cirurgião sabiam quem estava recebendo o ATNX de verdade e quem estava recebendo soro fisiológico (placebo). Isso elimina qualquer tendência inconsciente.
No total, 78 pacientes foram divididos igualmente entre os dois grupos. Tudo foi padronizado para que a única diferença real entre eles fosse o conteúdo infundido; 39 pacientes receberam 1000mg ATNX diluídos em solução salina de 100 mL e 39 pacientes receberam apenas a solução salina. A infusão foi realizada 15 minutos antes da incisão cirúrgica.
O resultado que surpreendeu
A cada 15 minutos, o cirurgião parava e dava uma nota para a qualidade da sua visão: “Péssima”, “Regular” ou “Boa”.
Quando os dados foram analisados, a surpresa: não houve diferença real entre os grupos. A visão foi praticamente idêntica.
Curiosamente, a porcentagem de tempo com visão “Boa” foi até um pouco maior no grupo que recebeu placebo, mostrando que o TNXA não apenas não ajudou, como também não atrapalhou.
Saiba mais: Artroscopia de quadril no impacto femoroacetabular
Por que o TXA não funcionou como esperado no quadril?
A medicina é cheia de pequenas nuances. O que funciona em uma articulação (como o ombro, onde alguns estudos mostram benefício) pode não se repetir em outra.
Acredita-se que a vascularização única do quadril e a própria pressão do líquido que usamos para distendê-lo durante a cirurgia já façam um bom controle local do sangramento, tornando o efeito de um medicamento sistêmico como o TNXA menos impactante na visualização cirúrgica.
Segurança e a mensagem principal
É importante destacar: o estudo não encontrou nenhum problema de segurança. O TNXA se mostrou seguro, sem eventos tromboembólicos ou outros efeitos colaterais graves nos participantes que o receberam.
A grande mensagem, portanto, não é que o TNXA é ruim. A mensagem é que seu uso rotineiro, com o único objetivo de melhorar visualização, talvez não se justifique.
Conclusão: a ciência nos guiando
Esse estudo é um excelente exemplo de como a ciência deve guiar nossa prática. Ele nos faz questionar um hábito que parecia lógico e nos direciona para um uso mais inteligente e racional de um medicamento.
No final, a melhor ferramenta para uma boa visualização ainda é a experiência do cirurgião, uma técnica cirúrgica meticulosa e o controle fino dos parâmetros da artroscopia. A “bala de prata” farmacológica para uma visão perfeita, infelizmente, ainda não foi encontrada. E está tudo bem desta forma.
E agora, como fica nossa prática?
- Para a maioria dos casos: Podemos repensar a prescrição automática. O estudo sugere que estamos gastando um recurso (mesmo que barato) sem um retorno clínico mensurável para o ato cirúrgico em si.
- Para casos selecionados: O TNXA ainda pode ter seu valor! Pacientes com histórico de sangramento, distúrbios de coagulação ou em procedimentos mais complexos e longos pode existir benefício no uso da medicação.
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