O politrauma é uma das principais causas de mortalidade e incapacidade na Europa. Seu manejo requer uma abordagem rápida, estruturada e multidisciplinar, com foco na estabilização das lesões com risco de vida, prevenção de complicações secundárias e suporte à recuperação em longo prazo.
Para isso, protocolos claros e padronizados são fundamentais. As diretrizes alemãs S3 representam um guia robusto e consolidado, mas até então não havia adaptação consensual em nível europeu.
Assim, em 2025, a European Society for Trauma and Emergency Surgery (ESTES) reuniu especialistas internacionais para formular recomendações adaptadas à realidade europeia, baseadas nas melhores evidências disponíveis.
Qual o objetivo do estudo?
Estabelecer recomendações europeias para o tratamento do politrauma, elaboradas pela European Society for Trauma and Emergency Surgery (ESTES) com base nas diretrizes alemãs S3 para pacientes com lesões graves ou múltiplas.
Consistiu basicamente em um consenso, envolvendo especialistas de diversos países europeus, que revisaram as evidências científicas mais recentes e adaptaram as recomendações para um contexto europeu mais amplo.
Foram abordados tópicos críticos no atendimento ao politraumatizado, incluindo: avaliação inicial e triagem, manejo pré-hospitalar, abordagem no pronto-socorro (seguindo o conceito de ATLS), estratégias de imagem, controle de hemorragia, reposição volêmica, manejo de vias aéreas, suporte ventilatório, cuidados neurocirúrgicos, ortopédicos e torácicos, bem como aspectos de organização de sistemas de trauma e transferência inter-hospitalar.
Com isso, o estudo buscou harmonizar as práticas entre diferentes países da Europa, promovendo padrões de atendimento que possam melhorar o prognóstico e a sobrevida de pacientes com trauma grave.
Metodologia
As recomendações foram construídas a partir de um processo de consenso estruturado, envolvendo 15 sociedades nacionais de 13 países europeus. Cada sociedade indicou um delegado nacional apoiado por especialistas locais. O Consensus Working Group (CWG), composto por representantes da ESTES, do comitê de pesquisa e da Deutsche Gesellschaft für Unfallchirurgie (DGU), coordenou o processo.
O método utilizado foi o RAND Appropriateness Method (RAM), em duas rodadas Delphi modificadas. Na primeira rodada, (jan–fev/2024), os especialistas avaliaram 139 recomendações da diretriz S3, atribuindo notas de 1 a 9.
Divergências foram analisadas pelo CWG, que reformulou ou excluiu recomendações conforme aplicabilidade local. Na segunda rodada, (jul/2024), 135 recomendações foram reavaliadas em reunião virtual e 128 foram consideradas apropriadas. Na etapa final de setembro de 2024, todas as recomendações apropriadas foram também consideradas necessárias.
Principais achados
O consenso alcançou 92% de concordância: 128 de 139 recomendações foram consideradas apropriadas e necessárias. Nenhuma foi julgada inapropriada. Ademais, 7 recomendações permaneceram incertas, refletindo diferenças regionais e novas evidências publicadas após a diretriz S3.
Entre os pontos de discordância, destacaram-se no atendimento pré-hospitalar: o uso de curativos hemostáticos à base de quitosana, limitados pela baixa disponibilidade em alguns países; a confirmação da posição do tubo endotraqueal, com alguns sistemas preferindo ultrassonografia em vez de capnografia, videolaringoscopia ou broncoscopia; o uso de cristaloides para reposição volêmica, questionado em cenários onde há disponibilidade de transfusão pré-hospitalar de hemocomponentes e a escolha de analgésicos (fentanil, cetamina ou morfina), afetada por diferenças de segurança, hemodinâmica e acesso a fármacos.
No ambiente hospitalar, três recomendações geraram controvérsias: o uso do REBOA (balão endovascular de oclusão da aorta), com evidências recentes apontando ausência de benefício em sobrevida e até risco aumentado de mortalidade, além de complicações graves; a administração precoce de fibrinogênio em pacientes com hemorragia grave, cuja eficácia em reduzir mortalidade permanece incerta, apesar da recomendação de manter níveis plasmáticos acima de 1,5 g/dL; e o exame físico da pelve em pacientes graves com pelvic binder aplicado no pré-hospitalar, já que as práticas variam entre liberar o imobilizador para avaliação clínica imediata ou priorizar exames de imagem devido ao risco de reagravamento do sangramento.
Limitações
A elaboração do documento contou com 15 sociedades europeias de trauma e cirurgia de emergência, abrangendo 13 países. No entanto, alguns países não participaram — o que impediu a inclusão de suas particularidades locais e modelos organizacionais. O grupo envolvido foi considerado representativo da diversidade europeia em termos geográficos, demográficos, econômicos e de maturidade dos sistemas de trauma.
Por isso, acredita-se que as recomendações propostas possam ser aplicáveis à maioria dos contextos europeus. Além disso, para manter o estudo flexível, optou-se por incluir apenas recomendações de Grau de Recomendação A e Boas Práticas Clínicas, deixando de fora outros aspectos relevantes do manejo do paciente politraumatizado.
Mensagem prática
Houve ampla concordância na maioria das recomendações, visto que a maioria destas é universalmente aplicável, e pode servir de base sólida para protocolos clínicos. No entanto, as incertezas refletiram diferenças regionais, sendo necessárias adaptações locais.
As limitações de recursos e de evidências recentes, mostram a necessidade de adaptar protocolos às realidades locais e de atualizar diretrizes à luz de novos estudos. No ambiente pré-hospitalar, a variabilidade de recursos exige treinamento em múltiplas estratégias. Observou-se a emergência de novas tecnologias (como REBOA e fibrinogênio precoce), as quais devem ser aplicadas com cautela até que haja evidência mais robusta.
Sendo assim, é fundamental que os protocolos sejam flexíveis, adaptando-se ao contexto e às condições do paciente. Ou seja, embora haja consenso internacional em princípios básicos do manejo do politrauma, a aplicação prática deve ser contextualizada, equilibrando evidência científica com os recursos e particularidades do sistema de saúde de cada região.
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