Para o paciente que se preparou psicologicamente e organizou sua vida para a cirurgia, um cancelamento no dia do procedimento é uma experiência frustrante e angustiante, podendo abalar a confiança no sistema de saúde.
Para a instituição e os cirurgiões, representa uma enorme perda de recursos. O tempo de sala cirúrgica, um dos recursos mais valiosos e caros de um hospital, é desperdiçado, impactando a eficiência e a economia do sistema.
Um recente estudo publicado na revista científica “Arthroplasty” investigou profundamente esse problema para responder a uma pergunta crucial: Quem cancela e por quê?
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O que o estudo fez
Pesquisadores revisaram um número impressionante: 38.849 cirurgias de artroplastia total de quadril (ATQ) e joelho (ATJ) agendadas em um grande centro acadêmico urbano ao longo de seis anos.
Eles identificaram todos os casos cancelados no próprio dia da cirurgia e os categorizaram em dois grandes grupos:
- Problemas Relacionados à Saúde (Operacionais): Questões médicas agudas, exames alterados, falta de liberação clínica.
- Problemas Logísticos/Comportamentais (Não Operacionais): Hesitação do paciente, problemas de transporte, questões financeiras, ausência sem aviso.
A escala do problema: menor do que se imagina, mas custosa
A boa notícia: a taxa de cancelamento no dia foi baixa, de apenas 0,9% (362 casos). Isso reflete sucesso dos protocolos de preparo pré-operatório.
A má notícia: mesmo essa pequena porcentagem representa centenas de pacientes insatisfeitos e um prejuízo financeiro considerável para o hospital.
O perfil do paciente que teve a cirurgia cancelada
O fator de risco mais forte e consistente para cancelamento, tanto para ATQ quanto para ATJ, foi um alto Índice de Massa Corporal (IMC). Pacientes com obesidade têm maior predisposição a comorbidades que podem levar a intercorrências de última hora.
Para a Artroplastia de QUADRIL especificamente, outros fatores se destacaram: ser homem, ser não branco e ter um alto Índice de Comorbidade de Charlson (ICC) também aumentaram o risco.
Para a Artroplastia de JOELHO, o IMC elevado se manteve como o principal preditor, mas os outros fatores (sexo, etnia, ICC) não foram significativos.
Os motivos que levaram ao cancelamento
- A esmagadora maioria dos cancelamentos (75%) foi por problemas de saúde:
- Problemas médicos agudos: Hipertensão não controlada na admissão, infecções de pele, problemas cardíacos ou respiratórios que surgiram na hora H.
- Exames alterados: Resultados anômalos de laboratório colhidos no pré-operatório imediato.
- Liberação clínica incompleta: Falha no processo de avaliação por outras especialidades antes da cirurgia.
- A minoria (25%) foi por problemas não médicos:
- Hesitação do paciente: O famoso “medo da cirurgia” que bateu na última hora.
- Para esta causa de cancelamento a idade jovem se mostrou como um fator de risco.
- Problemas de transporte e financeiros.
- Ausência sem aviso prévio (“no-show”).
E depois do cancelamento?
A grande maioria dos pacientes (82%) conseguiu ser reagendada, em uma mediana de 25 dias após o cancelamento.
Não houve diferença na taxa de reagendamento entre quem cancelou por motivos de saúde ou logísticos. O sistema conseguiu absorver a maioria desses pacientes de volta à lista de espera.
O que isso tudo significa na prática? (As lições)
- Identificação de pacientes de alto risco: O estudo fornece um “perfil” claro. Pacientes com obesidade, múltiplas comorbidades (especialmente para ATQ), e de minorias étnicas podem se beneficiar de um acompanhamento pré-operatório mais rigoroso e próximo.
- Otimização pré-operatória é a chave: Como 3 a cada 4 cancelamentos são por questões de saúde, isso indica uma janela de oportunidade. Uma triagem mais rigorosa, consultas de pré-anestesia bem conduzidas e um controle agressivo de comorbidades nas semanas que antecedem a cirurgia podem evitar a maioria desses contratempos.
- Comunicação e apoio ao paciente: Para o grupo que cancela por hesitação ou problemas logísticos, é crucial investir em uma comunicação clara e empática antes da cirurgia, confirmando o agendamento, esclarecendo dúvidas e ajudando a resolver possíveis empecilhos como transporte.
Mensagem prática: uma oportunidade de melhoria
Cancelamentos no dia da cirurgia são relativamente raros, mas têm um impacto profundo. Eles não são aleatórios; seguem um padrão previsível.
Conhecer esse padrão é o primeiro passo para prevenir. O estudo não aponta uma falha, mas sim um caminho: investir em uma medicina mais proativa e personalizada no pré-operatório, focando nos pacientes de maior risco, pode aumentar ainda mais a eficiência do sistema e, o mais importante, respeitar a jornada e a expectativa do paciente que aguarda ansiosamente por seu procedimento.
Os resultados deste estudo podem não corresponder aos achados em populações de países em desenvolvimento como o nosso e estudos semelhantes podem ajudar a guiar protocolos e práticas futuras em nosso meio.
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