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Oncologia15 agosto 2025

Carga global da perda auditiva autotóxica

Revisão sistemática avaliou, por métodos objetivos, a prevalência de ototoxicidade em pacientes expostos a cisplatina e/ou carboplatina

Cisplatina e carboplatina salvam vidas em tumores sólidos e hematológicos, mas custam caro para o ouvido interno. Em 2020, o mundo registrou 19,3 milhões de novos casos de câncer e boa parte desses pacientes recebeu um desses fármacos. O problema é que ao mesmo tempo em que combatem células tumorais, essas drogas podem lesionar irreversivelmente as células ciliadas da cóclea, produzindo perda auditiva sensorioneural bilateral. Os autores lembram que essa sequela compromete linguagem na infância, rendimento escolar, produtividade e saúde mental na vida adulta, com impacto ainda maior em países de baixa renda, que já enfrentam barreiras para acesso a aparelhos auditivos e reabilitação fonoaudiológica. Reconhecer a dimensão do problema é essencial para colocá-lo no radar de oncologistas, otologistas, gestores de saúde e indústria farmacêutica.

Desenho metodológico 

Trata-se de uma revisão sistemática com meta-análise conduzida segundo as diretrizes PRISMA. Três bases (MEDLINE, Embase e Web of Science) foram consultadas, selecionando estudos publicados entre 2005 e 2018 que avaliavam, por métodos objetivos (audiometria tonal, emissões otoacústicas ou BERA) a prevalência de ototoxicidade em pacientes expostos a cisplatina e/ou carboplatina. Após triagem por dois revisores independentes e resolução de discordâncias, 87 registros oriundos de 66 estudos entraram na síntese quantitativa. Os dados extraídos incluíram idade, tipo tumoral, dose cumulativa, uso de radioterapia e escala de classificação da perda auditiva. 

A análise empregou modelo de efeitos aleatórios adequado ao alto grau de heterogeneidade. Para explorar fontes de variação, os autores utilizaram metarregressão (dose cumulativa), estratificações por droga, idade, radioterapia, tipo de câncer e método diagnóstico.  

População envolvida 

Ao todo, 5077 pacientes distribuídos em 22 países foram avaliados. Houve predominância de publicações das Américas e Europa, mas a amostra incluiu séries da África, Sudeste Asiático e Pacífico Ocidental. Quanto ao regime, 49 registros usaram apenas cisplatina, 17 apenas carboplatina, 15 combinaram as duas e 6 não especificaram a molécula. As faixas etárias iam de lactentes a idosos. 

Resultados  

  • Prevalência global: a perda auditiva atingiu 43,17% dos expostos
  • Influência da droga: regimes com cisplatina apresentaram risco quase quatro vezes maior que carboplatina (cisplatina isolada 49,2%; cisplatina + carboplatina 56%, carboplatina isolada 13,5%).  Na prática clínica, isso significa que em cada dois pacientes tratados com cisplatina, um poderá sair da quimioterapia ouvindo pior do que quando começou o tratamento
  • Faixa etária: crianças menores de 5 anos tratadas com carboplatina foram relativamente poupadas (7,4%), mas quando receberam cisplatina a prevalência saltou para 66,7%. 
  • Radioterapia concomitante não alterou significativamente o risco (42,7% sem RT vs 43,8% com RT), possivelmente porque a maioria dos campos irradiados não envolvia o ouvido ou porque o efeito da droga se sobrepõe ao da radiação
  • Tipo de tumor: tumores germinativos, principalmente testiculares, lideraram com 67,9% de perda, seguidos de cabeça e pescoço (49,2%) e neuroblastoma (54,3%).  Essa distribuição sugere que regimes mais intensivos em dose ou ciclos comuns nesses cânceres aumentam o dano
  • Método diagnóstico: audiometria convencional detectou 41,2% de casos enquanto emissões otoacústicas (EOAE) apontaram 54,6%, reforçando que testes em altas frequências e EOAE captam lesão mais precoce. 
  • Carga global:  extrapolando incidência de câncer, padrões de tratamento e disponibilidade de quimioterapia, os autores estimaram que 1,02 milhão de pessoas recebem compostos platinados a cada ano; disso, resultariam cerca de 441 mil novos casos de perda auditiva induzida mundialmente. Em outras palavras, a cada hora que passa, surgem 50 novos pacientes com deficiência auditiva atribuível a cisplatina ou carboplatina

Considerações clínicas e implicações para a prática 

1) Converse sobre risco ototóxico antes do primeiro ciclo. Tal como discutimos sobre alopecia ou nefrotoxicidade, o dano auditivo precisa constar do consentimento informado. Um comparativo simples ajuda o paciente: “o remédio que vamos usar pode danificar o ouvido como se você ficasse anos exposto a ruído de britadeira, mas num intervalo de semanas” 

2) Escolha a droga com cuidado. Quando eficácia equivalente é possível, prefira carboplatina.  

3) Monitore de forma proativa e sensível. Faça audiometria de base e repita antes de cada ciclo, se a logística permitir  

4) Planeje reabilitação desde cedo. Inclua serviço de fonoaudiologia no plano terapêutico tal como já fazemos com nutrição e psicologia 

Em síntese, este estudo quantifica aquilo que muitos já percebiam no consultório: a “conta” auditiva da quimioterapia com derivados da platina é alta e, até aqui, subestimada. Transformar esses números em ação clínica – prevenção, monitorização e reabilitação – é tão crucial quanto alcançar a cura oncológica. 

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Referências bibliográficas

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