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Oftalmologia12 novembro 2025

Cross-linking corneano em populações pediátricas

Confira a revisão sobre cross-linking corneano em crianças com ceratocone e saiba qual protocolo mostrou melhores resultados.

O ceratocone é uma desordem ectásica, progressiva e bilateral, caracterizada por um afinamento e protrusão da córnea que culminam em astigmatismo irregular e deterioração da acuidade visual. A sua manifestação ocorre tipicamente durante o final da infância ou o início da adolescência, um período crítico para o desenvolvimento visual.  

Evidências consistentes demonstram que a progressão é mais rápida e severa em pacientes jovens quando comparados a adultos, resultando em uma deterioração mais célere da acuidade visual e uma maior probabilidade de necessidade de transplante de córnea em fases mais precoces da vida. Dessa forma, a detecção precoce e a intervenção terapêutica adequada são imperativos clínicos para preservar a função visual nesta população vulnerável. 

Para conter a progressão da doença, o cross-linking do colágeno corneano (CXL) emergiu como a principal intervenção terapêutica. O procedimento, que utiliza riboflavina como fotossensibilizador e irradiação ultravioleta-A (UVA), induz a formação de novas ligações covalentes no estroma corneano, aumentando a sua rigidez biomecânica e, com isso, detendo a progressão ectásica.  

Existem dois protocolos de tratamento principais: o protocolo padrão (S-CXL), ou de Dresden, com duração de 30 minutos de irradiação, e os protocolos acelerados (A-CXL), que empregam maior irradiância em um tempo inferior a 30 minutos. Contudo, a eficácia e segurança comparativa destes múltiplos protocolos, especificamente no contexto do ceratocone pediátrico, carecem de uma síntese abrangente que possa guiar a prática clínica de forma definitiva. 

Nesse sentido, foi conduzida uma revisão sistemática publicada no Journal of Refractive Surgery em 2025 que analisou os desfechos de estabilização do ceratocone após a aplicação de técnicas de CXL padrão e acelerado em pacientes com idade inferior a 18 anos. 

MÉTODOS 

Busca e Seleção 

A presente revisão sistemática foi conduzida em conformidade com as diretrizes do PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses) 2020, assegurando a transparência metodológica e a reprodutibilidade do estudo. Dessa forma, foi realizada uma busca bibliográfica abrangente nas bases de dados PubMed e Scopus, com a pesquisa final datada de dezembro de 2024. 

Critérios de Elegibilidade 

Os critérios de elegibilidade para a inclusão dos artigos na análise foram rigorosamente definidos, compreendendo: 

  • Estudos que relatassem desfechos clínicos em pacientes pediátricos (idade igual ou inferior a 18 anos); 
  • Inclusão de uma coorte de, no mínimo, 30 olhos tratados; 
  • Disponibilização de dados ceratométricos pré-tratamento e com um período de seguimento mínimo de 12 meses após o CXL. 

Critérios de Exclusão 

Foram excluídos estudos focados exclusivamente em populações adultas ou que não apresentavam dados de resultados suficientes para análise.  

Avaliação do desfecho primário 

Para avaliar a eficácia do CXL, foram avaliadas as mudanças nos valores de ceratometria máxima (Kmax) ou da ceratometria do meridiano mais curvo (K2) antes e 12 meses após o tratamento. A estabilização da doença fora definida como um aplainamento na ceratometria ou uma variação contida no intervalo de ±1.00 dioptria (D) em relação ao valor basal, indicando a interrupção da progressão. Ademais, embora a segurança não fosse o desfecho primário, dados relativos a complicações pós-operatórias e eventos adversos foram coletados e descritos. Devido à acentuada variabilidade nos protocolos clínicos entre os estudos (incluindo parâmetros de tratamento, veículos de riboflavina e localização do cone), um agrupamento estatístico dos dados (meta-análise) não fora realizado; os resultados foram, portanto, apresentados como uma síntese estruturada e agrupados por tipo de protocolo. 

RESULTADOS 

No total, 35 artigos, compreendendo um universo de 2.186 olhos, foram elegíveis e incluídos na análise final. Estes estudos foram categorizados em três grupos: 15 que utilizaram o protocolo padrão (S-CXL), 11 que empregaram um protocolo acelerado (A-CXL) e 9 que realizaram análises comparativas entre diferentes protocolos. De forma geral, a maioria dos estudos incluídos demonstrou taxas de estabilização do ceratocone superiores a 80% com os diversos protocolos de CXL avaliados. 

Desfechos do S-CXL 

Para os 15 estudos que avaliaram o S-CXL, a estabilização foi alcançada na maioria dos casos. Notavelmente, nove desses estudos reportaram taxas de estabilização que excederam 90%, e em sete deles, a taxa atingiu ou ultrapassou 95%. Contudo, na análise de longo prazo (7 a 10 anos), houve a evidência de uma progressão tardia (variando de 20% a 34%). A progressão, quando ocorria, era mais comum entre 24 e 36 meses após o procedimento.  

A falha na estabilização foi associada a: 

  • Espessura corneana: córneas mais finas (< 450um ou < 400um) apresentaram taxas de progressão significativamente maiores (ex: 47,6% vs 16,7% em um estudo); 
  • Excentricidade do cone: cones excêntricos (paracentrais) apresentaram maior progressão (50% vs 23,8% para cones centrais) por receberem menos irradiação UV-A efetiva; 
  • Gravidade: casos mais avançados (Kmax pré-operatório elevado) e idade mais jovem (menor ou igual a 15 anos) foram associados a maior risco de progressão; 
  • Condições associadas: Pacientes com quadro crônico de prurido ocular (associado a ceratoconjuntivite vernal) foi um dos fatores que culminou em necessidade de retratamento. 

Desfechos do A-CXL 

Nos 11 estudos que investigaram os protocolos A-CXL, a taxa de estabilização foi consistentemente superior a 80% em todos os trabalhos, com exceção de um subgrupo específico no estudo de Agca et al., que registrou 76,7%. Um dos estudos de maior seguimento, conduzido por Ahmet et al., demonstrou uma taxa de estabilização de 90,86% ao longo de 10 anos, reforçando a eficácia duradoura do A-CXL. Nenhum estudo mostrou piora média do Kmax.  

Variações do protocolo: 

  • Protocolos de alta irradiação (ex: 30mW/cm² por 4 min) tiveram resultados mistos: um estudo apresentou 23,3% de progressão, enquanto outro (em casos mais leves) relatou 100% de estabilização. Acredita-se que a alta irradiação possa limitar a eficácia devido ao esgotamento de oxigênio; 
  • Protocolos de média irradiação (ex: 18mW/cm² por 5 min) e tempos mais longos (9-15 min) evidenciaram resultados consistentemente bons. 

 

Em relação aos resultados a longo prazo, um estudo de 10 anos (usando  18mW/cm²) apresentou 90,86% de estabilização, com a maioria das progressões ocorrendo em pacientes com 14 anos ou menos. 

Um único estudo “epithelium-on” (pulsado) apresentou a menor alteração no Kmax e uma taxa de progressão de 20% em 3 anos.  

Comparativos entre S-CXL e A-CXL e outros 

S-CXL vs. A-CXL (ambos “epithelium-off”): 

  • A maioria dos estudos (6 de 9) não encontrou diferença estatisticamente significativa nas taxas de estabilização ou na progressão entre os protocolos padrão e acelerado “epithelium-off” 

CXL vs. Tratamento Conservador:  

  • O estudo KERALINK (Cochrane) confirmou a eficácia do A-CXL, evidenciando 7% de progressão no grupo A-CXL contra 43% no grupo controle (sem tratamento) em 18 meses. 

“Epi-off” vs. “Epi-on”/transespitelial (T-CXL): 

  • Um ensaio clínico comparou três grupos (S-CXL, A-CXL e T-CXL) e encontrou 100% de estabilização para S-CXL e A-CXL (ambos “epi-off”), mas apenas 78% de estabilização para o T-CXL em 3 anos; 
  • Outro estudo comparando S-CXL (“epi-off”) com A-CXL (“epi-on”) evidenciou 0% de progressão no grupo S-CXL contra 9,4% de progressão no grupo A-CXL (“epi-on”) em 5 anos.  

Efeitos Adversos 

Quanto ao perfil de segurança, os eventos adversos reportados foram, em geral, de natureza leve e infrequentes. A complicação mais comum fora a opacidade corneana transitória (haze), que na maioria dos casos se resolveu sem impacto significativo na acuidade visual final. Não foram relatadas complicações graves que ameaçassem a visão, como ceratite infecciosa ou melting corneano.  

DISCUSSÃO 

A revisão realizada confirma que o CXL tanto padrão (S-CXL) quanto acelerado (A-CXL) é eficaz e seguro na desaceleração da progressão do ceratocone em pacientes pediátricos. O S-CXL (padrão) apresentou taxas de estabilização, frequentemente superiores a 90% e o A-CXL (acelerado) também evidenciou altas taxas de estabilização (geralmente acima de 80%) com eficácia e segurança similares. A principal vantagem do A-CXL é a redução do tempo operatório, diminuindo a necessidade de anestesia geral em crianças. Não houve diferença significativa entre o S-CXL e o A-CXL no que tange a eficácia da estabilização.  

Em relação aos protocolos de A-CXL estudados, recomenda-se o uso de protocolos acelerados com duração mínima de 9 a 10 minutos (como 9mW/cm²) visto que protocolos mais curtos (3-5min) estiveram associados a menor eficácia, possivelmente devido ao esgotamento de oxigênio estromal. 

Os principais fatores evidenciados para a falha do tratamento (progressão) foram pacientes menores de 14 anos, presença de prurido ocular crônico, doença mais grave (alto Kmax), córneas finas (<450um) e localização excêntrica do cone. A progressão, quando ocorre, foi descrita, geralmente, entre 24 e 36 meses após o procedimento, ressaltando a importância do seguimento rigoroso.  

Em relação ao CXL transepitelial (T-CXL), sua eficácia foi consistentemente menor, com piores resultados topográficos e maiores taxas de progressão quando comparado aos demais grupos. Isso é atribuído à baixa penetração da riboflavina e ao alto consumo de oxigênio pelo epitélio intacto, o que limita o resultado do tratamento.  

Ambos os protocolos (S-CXL e A-CXL) mostraram-se seguros com raras complicações graves. O evento adverso mais comum foi o haze (opacidade) corneano transitório.  

Dada a natureza agressiva do ceratocone em populações pediátricas, os autores recomendam iniciar o tratamento no momento do diagnóstico (especialmente se a acuidade visual corrigida foi igual ou pior a 20/30) e promover um acompanhamento a cada 3 meses no primeiro ano.  

LIMITAÇÕES 

A principal limitação da revisão sistemática, reconhecida pelos próprios autores, reside na elevada heterogeneidade clínica entre os 35 estudos incluídos. A variabilidade nas populações de pacientes, nos parâmetros de tratamento (irradiância e tempo), nos veículos de riboflavina e nas definições de progressão impediu a realização de uma meta-análise quantitativa.  

Além disso, ferramentas como o GRADE, avaliação de risco de viés e medidas estatísticas de efeito não foram aplicadas, o que limita a força das conclusões. Essas limitações não diminuem o valor do estudo, mas refletem o estado atual da literatura sobre o tema, que, embora vasta, ainda carece da maturação metodológica necessária para fornecer evidências de nível superior. 

MENSAGEM PRÁTICA 

A análise detalhada da evidência disponível, sintetizada nessa revisão nos permite a tecer recomendações diretas para a prática clínica no manejo do ceratocone pediátrico. 

Primeiramente, dada a natureza agressiva e de rápida progressão da doença nesta faixa etária, sugere-se a indicação do CXL no momento do diagnóstico em pacientes considerados de alto risco, em vez de se adotar uma conduta expectante aguardando a progressão documentada. Esta abordagem proativa é fundamental para a preservação da acuidade visual e para evitar a necessidade de intervenções mais invasivas no futuro. Segundo o grupo de pesquisa, há a recomendação de tratar no diagnóstico se acuidade visual igual ou pior a 20/30.  

Em segundo lugar, no que tange à seleção do protocolo, o S-CXL (protocolo de Dresden) permanece como o padrão-ouro, com o mais longo e robusto corpo de evidências a seu favor. Contudo, os protocolos A-CXL demonstraram ser alternativas seguras e eficazes, com a vantagem prática de um menor tempo operatório, o que pode ser decisivo para a cooperação de pacientes pediátricos.  

É imprescindível, contudo, que o clínico compreenda que protocolos com irradiância muito elevada e tempo de exposição muito curto podem ter sua eficácia comprometida pela limitação de oxigênio estromal; nesse sentido, protocolos acelerados com duração entre 9 e 10 minutos podem oferecer um balanço mais favorável entre eficiência e eficácia biomecânica. Em relação aos protocolos transepiteliais, dada sua inferioridade em relação a eficácia e recorrência, desestimula-se protocolos de T-CXL em crianças.  

Ademais, faz-se importante a estratificação de risco individualizada para cada paciente. Fatores como idade muito jovem (menor que 14 anos), doença em estágio avançado (Kmax alto), a presença de cones excêntricos, pacientes atópicos (com alta fricção ocular) e córneas finas (< 450 micra) estão associados a um maior risco de falha terapêutica ou progressão tardia. Estes pacientes demandam um monitoramento pós-operatório mais rigoroso (trimestral). Para casos com cones excêntricos, o CXL guiado por topografia, quando disponível, representa uma abordagem terapêutica superior e deve ser considerado. 

Finalmente, é imprescindível a manutenção de um acompanhamento oftalmológico rigoroso e de longo prazo para todos os pacientes pediátricos submetidos ao CXL. A literatura documenta casos de recorrência da progressão, com particular atenção ao período entre 24 e 36 meses após o procedimento. O monitoramento contínuo é a única forma de detectar precocemente tais eventos e intervir de forma adequada. 

Autoria

Foto de Pedro Hélio Estevam Ribeiro Júnior

Pedro Hélio Estevam Ribeiro Júnior

Graduação - Medicina: Universidade Federal de Uberlândia • Residência - Oftalmologia: Universidade Federal de Uberlândia • Título de Especialista em Oftalmologia pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO/AMB) • Fellowship - Glaucoma Clínico e Cirúrgico - Glaucoma Instituto • Mestrado - Universidade Federal de Uberlândia • Preceptor de Oftalmologia no Hospital Universitário Sagrada Família / IMEPAC (Araguari) • Chefe do setor de Glaucoma do Hospital Universitário Sagrada Família / IMEPAC (Araguari).

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Referências bibliográficas

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