A uveíte tuberculosa ocorre quando há infecção direta no olho pelo Mycobacterium tuberculosis ou quando uma infecção em outra parte do corpo desencadeia uma inflamação ocular remota e estéril. A forma mais comum de apresentação envolve o comprometimento da coroide e vasculite retiniana, porém o M. tuberculosis pode infectar qualquer tecido ocular, resultando em várias apresentações clínicas, incluindo uveíte anterior com nódulos de íris, coroidite tuberculosa serpiginosa, nódulo coroidal (tuberculoma), vasculite retiniana oclusiva e coroidite multifocal.
Embora a tuberculose represente menos de 0,5% dos casos de uveíte em algumas regiões, estima-se que seja uma das principais causas de uveíte infecciosa em países endêmicos, como Índia e Indonésia, onde responde por 22,9% a 48% dos casos. Além disso, é responsável por cerca de 4% de todos os casos de uveíte no mundo.
A maioria dos diagnósticos de uveíte tuberculosa é presuntivo, devido à dificuldade em confirmar o diagnóstico, pois o Mycobacterium tuberculosis é paucibacilar. A paucibacilaridade do M. tuberculosis reduz a sensibilidade do esfregaço ácido-resistente (coloração de Ziehl-Neelsen) e do teste de PCR e as culturas em meio de Lowenstein-Jensen levam cerca de seis semanas para serem processadas.
Como a micobactéria se replica lentamente e está presente em pequenas quantidades no fluido ocular, muitas vezes é difícil confirmar sua presença no humor aquoso e vítreo. Além disso, a coleta desses fluidos é um procedimento invasivo e pouco realizado.
Geralmente o diagnóstico presumido de uveíte tuberculosa é realizado, quando o paciente se apresenta com uma clínica compatível, associada a uma confirmação histológica ou microbiológica (ensaio de liberação de interferon-gamma positivo (IGRA) ou um teste cutâneo de tuberculina (PPD) positivo). O diagnóstico presuntivo provoca atrasos no tratamento que podem resultar em complicações que ameaçam a visão, como glaucoma, catarata e edema macular cistóide.
O tratamento da tuberculose é árduo, envolvendo um regime de terapia antituberculosa com 4 medicamentos por um período mínimo de 6 meses, às vezes sem melhora perceptível na acuidade visual, possivelmente devido a uma resposta inflamatória autoimune recorrente, mesmo quando a tuberculose é indetectável no olho.
O grupo Collaborative Ocular Tuberculosis Study (COTS) desenvolveu uma ferramenta, de acesso aberto e custo-efetiva, projetada para orientar médicos na decisão de iniciar a terapia antituberculosa em pacientes com suspeita de uveíte tuberculosa. A calculadora COTS foi desenvolvida usando dados de 486 perguntas baseadas em cenários clínicos, essas perguntas foram avaliadas por 81 especialistas em uveíte, e suas avaliações foram então consolidadas por meio de um método Delphi sistemático de 2 etapas. Esse processo levou ao desenvolvimento de um algoritmo, que serve como base da calculadora COTS.
Esse estudo busca analisar, de forma estatística, se as recomendações da calculadora COTS são realmente eficazes para prever quando iniciar o tratamento antituberculose. Para isso, se avalia se pontuações de 4 e 5 na COTS podem ser usadas na prática clínica em uma coorte internacional.
Saiba mais: Uveítes: uma abordagem simplificada
Métodos
O estudo selecionou pacientes do estudo COTS-1 que tinham dados de acompanhamento em 12 meses e informações necessárias para preenchimento da calculadora COTS e sobre o tratamento antituberculoso. Para pacientes com uveíte bilateral, apenas informações sobre o olho direito foram incluídas.
A calculadora COTS utiliza três parâmetros para ajudar a decidir sobre o início do tratamento antituberculose. Os dois primeiros parâmetros são os resultados do PPD e IGRA, que indicam exposição ao Mycobacterium tuberculosis. O terceiro parâmetro é a análise de exames de imagem (radiografia ou tomografia de tórax) para verificar sinais de tuberculose ativa ou curada.
A pontuação da COTS varia de 1 a 5, sendo que a pontuação 5 indica alta probabilidade (81% a 100%) de tuberculose ocular, e mais da metade dos especialistas iniciaria tratamento antituberculose. E a pontuação 1 indica baixa probabilidade (0% a 20%) de uveíte tuberculosa, mas ainda assim mais de 50% dos especialistas poderiam optar pelo tratamento antituberculose.
Análise Estatística
Assim, três testes diagnósticos foram considerados para comparação. O teste 1 foi o julgamento clínico no momento da decisão do tratamento no estudo COTS-1. O teste 2 foi o uso de uma pontuação de 4 e 5 da calculadora COTS, independentemente do IQR, para orientar o início do tratamento antituberculose, e o teste 3 foi a pontuação 5 da calculadora COTS sozinha como o limite para recomendar o tratamento antituberculose.
Sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo (VPP), precisão, recall e pontuação F1 foram calculados para cada teste. Além disso, uma análise de subgrupo comparando a precisão diagnóstica dos três testes em grupos endêmicos e não endêmicos foi realizada.
Resultados
O estudo analisou 492 pacientes do total de 962 incluídos no COTS-1. A maioria era asiática (65,7%), seguida por europeus/brancos (15,2%) e outras etnias. Entre eles, 51 pacientes (10,4%) não receberam tratamento antituberculose. A calculadora COTS foi aplicada para avaliar sua eficácia na decisão de iniciar o tratamento antituberculose, sendo 45,7% tiveram alta ou muito alta probabilidade de receber o tratamento (pontuação 4 ou 5) e 22,5% tiveram probabilidade muito alta (pontuação 5).
Os testes mostraram que a pontuação 5 na calculadora COTS teve a maior especificidade, porém com a menor sensibilidade e o julgamento clínico teve a maior sensibilidade, mas com baixa especificidade. Analisando as métricas de desempenho dos testes, a pontuação 5 na calculadora COTS teve a maior precisão (0,88).
O julgamento clínico teve o maior recall (capacidade de identificar casos positivos) (0,95), enquanto COTS-5 foi o menor (0,26) e o julgamento clínico teve a melhor pontuação F1 (equilíbrio entre precisão e recall) (0,88), enquanto COTS-5 foi a menor (0,40). Em regiões endêmicas, a sensibilidade e a taxa de acerto foram consistentemente maiores. Em regiões não endêmicas, a especificidade foi maior na pontuação 4 e 5 na calculadora COTS.
Discussão
O julgamento clínico tem uma alta sensibilidade (95,5%), sendo capaz de identificar a maioria dos casos positivos, porém teve menor VPP que a pontuação 5 na calculadora COTS, o que significa que o julgamento clínico teve mais falsos positivos. Atualmente, a recomendação do COTS Consensus é a de que pacientes com pontuações na calculadora COT≤ 4 não devem receber tratamento com terapia antituberculose.
A terapia antituberculose é longa, mínimo de 6 meses e, tem efeitos adversos bem estabelecidos. A incidência de hepatotoxicidade induzida por terapia antituberculose, que inclui reações adversas potencialmente fatais, varia entre 2% e 28%. A taxa de mortalidade entre pacientes com insuficiência hepática aguda associada ao tratamento antituberculose é alta, 67,1%, e apenas 32,9% se recuperaram com tratamento clínico. A interrupção do tratamento é fator de risco significativo para o desenvolvimento de tuberculose multirresistente.
Devido ao acima exposto, pacientes com uveíte tuberculosa, devem ser avaliados com cuidado, pois o tratamento é longo e com efeitos adversos potencialmente graves e a sua suspensão favorece o desenvolvimento de tuberculose multirresistente.
A calculadora COTS não é útil para casos em que a chance de uveíte tuberculosa já é muito baixa. Isso porque sua precisão depende de quão provável é a doença antes do teste. Quando a probabilidade da uveíte tuberculosa antes do teste já é alta (áreas endêmicas), o COTS-5 é uma ótima ferramenta para recomendar a terapia antituberculose.
A calculadora COTS é uma ferramenta útil para ajudar os médicos a tomarem decisões, especialmente quando os recursos diagnósticos são limitados. No entanto, ela não deve ser usada isoladamente para decidir se o paciente precisa de tratamento, porque, ao priorizar a precisão do diagnóstico, a calculadora pode perder alguns casos verdadeiros da doença. Portanto, é importante que os médicos usem a calculadora como um complemento, considerando outros fatores clínicos antes de decidir sobre o tratamento.
Os diferentes limiares gerados variam em sensibilidade e especificidade dependendo do nível de endemicidade. Em regiões endêmicas de tuberculose, a probabilidade de um resultado positivo antes do teste é maior, tornando essencial priorizar a especificidade. Isso ajuda a evitar a sobrecarga dos sistemas de saúde com falsos positivos, que podem resultar em tratamentos desnecessários, aumento da resistência a medicamentos e custos elevados. Esses problemas são ainda mais críticos em locais com alta prevalência e recursos limitados, onde um diagnóstico incorreto pode levar ao uso inadequado da terapia antituberculose.
Em países com baixa prevalência da doença, o teste pode ser ajustado para maior sensibilidade, garantindo a detecção de mais casos reais de tuberculose. Isso reduz o risco de diagnósticos perdidos, especialmente em pacientes com sintomas menos evidentes, ajudando a evitar complicações.
Limitações
- Não há um teste definitivo para diagnosticar uveíte tuberculosa, tornando difícil confirmar se os pacientes realmente tinham a doença.
- A uveíte tuberculosa é complexa, misturando infecção e inflamação, o que pode ser confundido com reações autoimunes ou outras doenças.
- O tratamento pode causar reações paradoxais, onde a inflamação piora antes de melhorar, dificultando a avaliação dos resultados.
- O uso de corticosteroides também atrapalha a análise, pois podem aliviar os sintomas independentemente do tratamento antituberculose.
Impactos na prática médica
A clínica segue sendo soberana e deve seguir sendo utilizada para identificar pacientes potenciais verdadeiros positivos. A utilização da calculadora COTS posteriormente ao exame clínico e avaliação médica pode levar a menos falsos positivos e a um uso mais criterioso da terapia antituberculose.
Em regiões endêmicas para tuberculose, essa ferramenta ajuda a evitar a sobrecarga dos sistemas de saúde com falsos positivos, que podem resultar em tratamentos desnecessários, aumento da resistência a medicamentos e custos elevados.
O que podemos levar para casa?
O estudo em questão estudo evidenciou que a pontuação ≥ 4 na calculadora COTS foi associado a uma especificidade melhorada para recomendar o início da terapia antituberculose em comparação com confiar apenas no julgamento do clínico.
Na prática médica, essa ferramenta, em cenários de poucos recursos, pode fornecer orientação para recomendar o início da terapia antituberculose de forma mais seletiva do que o julgamento do clínico para pacientes com uveíte tuberculosa.
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