A miopia, caracterizada pela dificuldade para enxergar para longe, é um erro refracional que, geralmente, inicia-se na infância ou no início da idade adulta. Ela ocorre por um desbalanço entre o poder refrativo da córnea e do cristalino em relação ao diâmetro axial do globo ocular que culmina na formação de imagens antes da retina, o que gera imagens embaçadas de objetos distantes. A miopia aumenta o risco de doenças oculares como o descolamento de retina e o glaucoma. Além disso, a prevalência da miopia está em crescimento contínuo e estima-se que, até 2050, tenha-se uma prevalência global de miopia acima de 740 milhões de casos.
A miopia tem gênese multifatorial e, além do forte componente hereditário, outros fatores concorrem para o seu desenvolvimento como o estilo de vida. Compreender esses fatores é fundamental para propor medidas que visem à redução da sua incidência e ao desaceleramento da sua progressão.
Nesse sentido, a atividade física (AF), o comportamento sedentário (CS) e a duração do sono (DS) interferem no ritmo circadiano que participa ativamente da regulação da fisiologia ocular e pode interferir no desenvolvimento e na progressão da miopia.
Trabalhos prévios evidenciaram que uma redução do período de sono pode antecipar o início da miopia e atividades sedentárias realizadas à noite interferem negativamente no ciclo circadiano podendo interferir negativamente na progressão miópica. Dessa forma, estratégias como a AF diurna, otimização da duração do sono, uso minimizado de telas à noite pode diminuir o risco de miopia ao preservar ritmos circadianos fisiológicos.
Meta-análises prévias investigaram as associações entre incidência, prevalência e progressão da miopia com AF, CS e DS e mostraram que um aumento da AF, redução do CS e DS suficiente estão associados a um menor risco de miopia. Contudo, não havia, até a publicação desse trabalho, evidências suficientes para corroborar limites diários específicos que possam reduzir a incidência ou a prevalência de miopia.
Dessa forma, foi realizada uma revisão sistemática e meta-análise dose-resposta publicada em 2025 na BMC Public Health com estudos publicados até novembro de 2024 que buscou avaliar as associações dose-resposta entre AF, CS, DS e a incidência ou prevalência de miopia em crianças e adolescentes.
MÉTODOS
Seleção dos estudos
Esse estudo seguiu as diretrizes do MOOSE (Meta-analysis of Observational Studies in Epidemiology) e do PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Review and Meta-Analysis) e foi registrado no banco de dados PROSPERO (CRD42024627651). A busca englobou trabalhos publicados até 19 de novembro de 2024 e foi conduzida nas seguintes bases de dados: PubMed, EMBASE, The Cochrane Library e Web of Science. Os termos incluídos foram: “myopia”, “exercise”, “sedentary behavior” e “sleep”.
Critérios de inclusão e de exclusão
Os critérios de inclusão foram: trabalhos em inglês, população do estudo de 5 a 19 anos, AF, CS e DS como fatores de exposição com quantificação subjetiva ou objetiva do tempo total diário ou semanal, critérios que definem a miopia via refração (com ou sem cicloplegia) por oftalmologista ou optometrista e sua incidência, estudos prospectivos, transversais e de coorte e razão de chances (odds ratio) e intervalo de confiança de 95% (ou com dados que permitisse esse cálculo).
Os critérios de exclusão foram: ausência de dados sobre atividade física diária/semanal, comportamento sedentário e duração do sono, critérios indefinidos para miopia ou miopia autorrelatada, estudos experimentais, estudos em animais, revisões sistemáticas, estudos em língua diversa da inglesa.
Dois pesquisadores independentes selecionaram os títulos e resumo dos artigos com base nos critérios de inclusão e de exclusão e, após comparar os resultados e dirimir as discrepâncias, os artigos completos foram revisados por completo de maneira independente.
Avaliação do risco de viés
A qualidade metodológica e o risco de viés dos trabalhos foram acessados via Listas de Verificação de Avaliação Crítica do Joanna Briggs Institute (JBI) para Estudos Transversais e de Coorte. Para estudos transversais, a JBI engloba oito itens e, para estudos de coorte, essa ferramenta engloba 11 itens. Para análise quantitativa do risco de viés, fora aplicada a ferramenta ROBINS-I.
Avaliação da exposição
A AF é definida como qualquer movimento corporal que requer gasto de energia e, nesse trabalho, refere-se à duração total diária da atividade física independente do contexto em que ela ocorre.
O CS é caracterizado por qualquer comportamento que gere um gasto de energia igual ou menor a 1,5 equivalente metabólico (MET) quando sentado, reclinado ou deitado. Nesse trabalho, o CS englobou o trabalho de perto (TP) que envolve atividades de curta distância como leitura e estudo e envolveu também o tempo de tela (TT) que refere o tempo total diário frente a telas (televisão, computador, celular).
A DS refere-se ao tempo total gasto dormindo dentro de um período de 24 horas.
Meta-análise de dose-resposta categórica
Cada fator de exposição foi dividido em três categoriais: mais alta, média e mais baixa. A duração mediana e o intervalo interquartil para cada categoria de tempo foram calculados para verificar se não havia sobreposição entre as categoriais.
A atividade física foi categorizada como <60 vs. ≥60 min/dia de intensidade moderada a vigorosa (Organização Mundial da Saúde – OMS), o tempo de tela foi classificado como <2 vs. ≥2 h/dia para atividades recreativas (Diretrizes de Movimento de 24 horas) e a duração do sono foi categorizada como <8 vs. ≥ 8 h/noite (National Sleep Foundation – NSF).
Devido à ausência de padrões oficiais, as análises de sensibilidade não foram realizadas para a exposição ao trabalho de perto. Dessa forma, fora confeccionada uma meta-análise de dose-resposta categórica comparando a categoria mais baixa com as categorias média e mais alta e foram calculados os efeitos combinados entre as diferentes categorias de fator de exposição e a incidência ou prevalência de miopia. A heterogeneidade do estudo foi avaliada usando a estatística I2 e a estimativa τ2. Todas as análises foram conduzidas usando o software R.
Meta-análise de dose-resposta contínua
Uma meta-análise de dose-resposta contínua foi realizada para investigar a associação entre cada hora adicional por dia de vários fatores de exposição e a incidência ou prevalência de miopia, usando o pacote GLST no Stata.
RESULTADOS
A busca inicial identificou 2062 artigos e, após a triagem de títulos e resumos e revisão do texto completo, 45 estudos foram incluídos na análise final (39 estudos transversais e 6 coortes prospectivas). A amostra envolveu 766.848 crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos com estudos publicados entre 2004 e 2024.
Associação entre AF e incidência e prevalência de miopia
Seis estudos de coorte e 20 estudos transversais avaliaram a associação entre AF e a incidência ou prevalência de miopia. Em relação à categoria mais baixa de AF, tanto a categoria mais alta (OR: 0,77; IC 95%: 0,63, 0,96; I2 =79%) quanto a intermediária (OR: 0,76; IC 95%: 0,63, 0,93; I2 =89%) estiveram associadas a um risco reduzido de incidência e prevalência de miopia. Participantes que praticavam ≥60 min/dia de AF apresentaram chances significativamente menores de miopia (OR: 0,77; IC 95%: 0,67-0,89).
Na análise dose-resposta contínua, 7 estudos foram incluídos e houve uma associação linear significativa entre a AF e a incidência ou prevalência de miopia (P linearidade=0,003; P não linearidade=0,0538). Cada hora adicional de AF por dia foi associada a uma redução de 12% no risco de miopia (OR: 0,88; IC 95%: 0,81, 0,96; I2 =79,6%)
Associação entre CS e incidência e prevalência de miopia – Trabalho de perto
Quatro estudos de coorte e 23 estudos transversais relataram associações categóricas entre TP e a incidência ou prevalência de miopia. Em relação ao TP mais baixo, tanto a categoria mais alta (OR=1,71; IC 95%: 1,28, 2,27; I2=97%) quando a intermediária (OR=1,34; IC 95%: 1,19, 1,50; I2 =91%) foram associadas a um risco maior de incidência e prevalência de miopia.
Na análise dose-resposta contínua, 7 estudos foram incluídos e houve uma associação não linear entre o TP e a incidência ou prevalência de miopia (P não linearidade=0,000; P linearidade=0,104). Para crianças e adolescentes com 1,5 h/dia e 2,5 h/dia de TP, o risco de miopia aumentou, respectivamente, em 25% (OR=1,25; IC95%:1,11,1,42) e 29% (OR=1,29; IC95%:1,03,1,63). Para TP de 3,5 h/dia, não houve associação estatisticamente significativa (OR = 1,27; IC95%: 0,90,1,80)
Associação entre CS e incidência e prevalência de miopia – Tempo de tela
Duas coortes e 21 estudos transversais descreveram associações categóricas entre o TT e a incidência ou prevalência de miopia. Em comparação com a categoria mais baixa de TT, tanto a categoria mais alta (OR=1,59; IC 95%: 1,14, 2,22; I2=95%) quanto a intermediária (OR=1,29; IC 95%: 1,12, 1,49; I2=91%) foram significativamente associadas a um risco aumentado de incidência e prevalência de miopia. O tempo de tela superior a 2 horas por dia foi significativamente associado a uma maior incidência e prevalência de miopia (OR: 1,22; IC 95%: 1,07-1,39).
Na análise dose-resposta contínua, 3 estudos foram incluídos e uma associação linear altamente significativa entre o TT e a incidência ou prevalência de miopia foi encontrada (P linearidade=0,000; P não linearidade=0,4509): para cada hora adicional de TT por dia, o risco de miopia aumentou em 31% (OR=1,31; IC 95%: 1,25, 1,38; I2=94,2)
Associação entre DS e incidência e prevalência de miopia
15 estudos transversais descreveram associações categóricas entre a DS e a incidência ou prevalência de miopia. Em comparação com a categoria mais baixa de DS, tanto a categoria mais alta (OR=0,67; IC 95%: 0,48, 0,92; I2 =80,2%) quanto a categoria intermediária (OR=0,82; IC 95%: 0,73, 0,92; I2 =77,6%) foram significativamente associadas a um menor risco de incidência ou prevalência de miopia. A análise demonstrou que aqueles que dormiam < 8 horas por noite apresentaram 22% menos de chance de miopia (OR: 0,78; IC 95%: 0,68-0,89; I2 =81,1%).
Na análise dose-resposta contínua, 6 estudos foram incluídos e observou-se uma associação não linear entre DS e a incidência ou prevalência de miopia (P não linearidade=0,0423; P linearidade=0,442): o risco mostrou um declínio lento para DS inferior a 8,5 h/dia, mas a taxa de declínio aumentou após 8,5 h/dia. Esse efeito não atingiu significância estatística e os resultados não foram totalmente consistentes.
DISCUSSÃO
Essa foi a primeira meta-análise que avaliou a relação dose-resposta entre AF, TT, DS e a incidência ou prevalência de miopia em crianças e adolescentes em um período de 24 horas. Na meta-análise de dose-resposta contínua, foram observadas associações lineares significativas para AF e TT, com cada hora adicional de AF reduzindo o risco de miopia em 12% e cada hora adicional de TT aumentando-o em 31%.
Relações não lineares foram observadas para TP e DS. Para 1,5 e 2,5h de TP houve um aumento respectivo de 25% e de 29% no risco de miopia. Apesar de uma DS mais longa ter apresentado uma tendência a declínio no risco de miopia, essa associação não foi estatisticamente significativa.
Na análise categórica, em relação às categorias mais baixas, as categorias mais altas e intermediárias de AF (4h/dia e 2h/dia) e de DS (10h/dia e 8h/dia) reduziram significativamente o risco de miopia. Em contrapartida, as categorias mais altas e intermediárias de TT (5h/dia e 3h/dia) e de TP (7,5h/dia e 4,5h/dia) aumentaram significativamente o risco de miopia.
De forma geral, os resultados mostraram que a AF está significativamente associada a um risco reduzido de miopia em crianças e adolescentes. Isso pode ser explicado pelo aumento do fluxo sanguíneo para retina após atividades físicas, melhorando a circulação da coroide o que pode suprimir o alongamento excessivo do globo ocular.
A associação encontrada entre o CS prolongado (incluindo TP e TT) e o maior risco de miopia pode ser explicado pela maior demanda acomodativa que as atividades de perto exigem, podendo exceder a base acomodativa estática e resultar em uma desfocagem hipermetrópica na retina periférica que estimula um alongamento axial, contribuindo para o desenvolvimento da miopia.
Apesar de o DS prolongado parecer reduzir o risco de miopia, nesse trabalho, nenhum nível dose específico atingiu significância estatística na análise dose-resposta contínua. Alguns trabalhos sugerem que os ritmos circadianos podem desempenhar influência no crescimento ocular e a alteração desses ritmos pode levar a um crescimento ocular anormal com consequente desenvolvimento da miopia.
LIMITAÇÕES
A maioria dos trabalhos não estratificou os participantes por sexo, o que inviabilizou a análise entre homens e mulheres. Ademais, os dados sobre confundidores em nível individual estavam incompletos. Além disso, somente um estudo utilizou acelerômetro para medir objetivamente a AF e o CS das crianças, os demais estudos dependeram de questionários autorrelatados ou preenchidos pelos pais, o que incorre no viés de memória e subestimação da atividade total. Ademais, dado o número limitado de estudos, foram incluídos estudos transversais e mensurações refracionais sem cicloplegia, o que pode ter superestimado a incidência de miopia. Por fim, a alta heterogeneidade destaca variações significativas nos desenhos dos estudos.
MENSAGEM PRÁTICA
Esse trabalho apresentou evidências robustas que ressaltaram a importância de modificar hábitos do estilo de vida para diminuir o risco de miopia em crianças e adolescentes. Dentre essas medidas, as que apresentaram maior evidência e robustez na redução da incidência e prevalência da miopia foram o aumento da atividade física e a redução do tempo de tela e do trabalho para perto.
Sugere-se que crianças e adolescentes realizem, ao menos, 1 hora de exercício físico por dia e que minimizem o uso de telas e de atividades de perto. Apesar de o tempo de sono parecer ter um papel protetor, mais estudos são necessários para corroborar essa relação.
Veja também:Pré-miopia em pré-escolares: precisamos nos preocupar?
Autoria

Pedro Hélio Estevam Ribeiro Júnior
Graduação - Medicina: Universidade Federal de Uberlândia • Residência - Oftalmologia: Universidade Federal de Uberlândia • Título de Especialista em Oftalmologia pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO/AMB) • Fellowship - Glaucoma Clínico e Cirúrgico - Glaucoma Instituto • Mestrado - Universidade Federal de Uberlândia • Preceptor de Oftalmologia no Hospital Universitário Sagrada Família / IMEPAC (Araguari) • Chefe do setor de Glaucoma do Hospital Universitário Sagrada Família / IMEPAC (Araguari).
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