Ensaio clínico randomizado comparou método assistido por inteligência artificial em relação ao método convencional baseado em prismas no resultado cirúrgico, na visão estereoscópica e na qualidade de vida de pacientes com exotropia intermitente após o tratamento
A exotropia intermitente é um tipo de estrabismo que ocorre entre a exoforia e a exotropia constante e manifesta-se, clinicamente, como uma grande alteração no ângulo visual tanto para longe quanto para perto. Mais de 80% dos casos de exotropia são de exotropia intermitente que possui uma prevalência aproximada de 3,24% em crianças na China. Os sintomas clínicos iniciais costumam ser sutis e são, comumente, negligenciados pelos pais, o que retarda intervenções precoces e pode levar à exotropia constante.
Atualmente, os tratamentos cirúrgicos para a exotropia intermitente incluem o recuo do músculo reto bilateral ou recuo-ressecção em um único olho. O planejamento pré-operatório tradicional envolve a inspeção da posição ocular com prismas a 6 metros e a 33 centímetros.
Contudo, os pacientes, eventualmente, evoluem com complicações pós-operatórias como supercorreção do estrabismo e exotropia recorrente, especialmente em crianças cuja função visual ainda não se desenvolveu completamente, o que pode gerar consequências mais graves como a esotropia, ambliopia ou perda da visão estereoscópica para longe e para perto.
Um sistema de computação assistido por inteligência artificial (IA) é capaz de gerar cenários com experiências de simulação baseadas em cenas reais ou fictícias. Esse sistema coleta imagens da posição ocular em nove direções combinadas com o desempenho estereoscópico do nível da “visão cerebral” do paciente gerando uma correspondência da visão estereoscópica binocular do paciente para formular o planejamento cirúrgico do estrabismo do paciente.
Dessa forma, foi realizado um ensaio clínico randomizado em Ziyang (China) publicado na BMC Ophthalmology em 2025 que comparou a eficácia clínica dos métodos de cálculo tradicionais (prismas) com o sistema de computação assistido por IA no planejamento cirúrgico da exotropia intermitente. Foram analisados os resultados da correção cirúrgica, a função estereoscópica e a qualidade de vida.
Veja também: Realidade virtual no controle da exotropia intermitente
MÉTODOS
Participantes
108 crianças (52 meninos e 56 meninas) de 8 a 13 anos (10,71 ± 2,69) com exotropia intermitente foram incluídas nesse estudo. Os critérios de inclusão foram:
- Boa habilidade de comunicação e compreensão e comparecimento às consultas de pós-operatório;
- Posição primária do olhar com estrabismo vertical ou alternada com exotropia com subsequente indução de exotropia após oclusão ocular por cerca de 30 minutos;
- Pacientes de 8 a 18 anos sem outras doenças oftalmológicas.
Os critérios de exclusão foram:
- Lesões orgânicas oculares (como catarata, glaucoma, doenças corneanas, uveíte, tracoma, doenças retinianas etc.);
- Outros tipos de estrabismo.
Foi realizada uma seleção direcionada dos pacientes que apresentaram astigmatismo entre 0,0 e -1,0 D e estrabismo entre 15-30 △. Não houve diferença estatisticamente significativa na comparação geral da magnitude do astigmatismo e da gravidade do estrabismo entre os grupos. Todos os pacientes (e seus responsáveis) assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido e a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa local.
Os participantes foram divididos em dois grupos:
- Grupo A (Controle): planejamento cirúrgico realizado pelo método tradicional (mensuração do desvio ocular utilizando prismas para perto (33cm) e para longe (6m).
- Grupo B (Experimental): planejamento cirúrgico realizado com auxílio de um sistema de IA para o cálculo da correção cirúrgica necessária.
Método computacional assistido por inteligência artificial
Uma plataforma inteligente de análise visual baseada em realidade virtual foi utilizada (“Brain Imaging Biological Stimulation Training System” desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa de Dispositivos Médicos de Guangdong). Esse sistema utiliza uma plataforma de realidade virtual para criar um ambiente de exame 3D.
As crianças, ao utilizar óculos 3D, interagem com as imagens geradas em uma tela formando um mapa ocular em nove direções que avaliam o alinhamento ocular em várias posições do olhar. A partir dessas imagens, ocorre um processamento via inteligência artificial por meio de uma rede neural convolucional que gera um cálculo preciso do ângulo exato do desvio ocular e da estereopsia (visão em tridimensão). Com isso, é gerada a métrica precisa para a correção cirúrgica do estrabismo.
Procedimento e pós-operatório
Todas as cirurgias foram realizadas pelo mesmo cirurgião com a técnica de recuo-ressecção em um olho (técnica “hang-back”). Todos os pacientes foram submetidos ao mesmo treinamento de visão estereoscópica após a cirurgia
Desfechos analisados
Foram avaliados os seguintes indicadores:
- Taxa de sucesso da cirurgia:
- Bem-sucedida: Exotropia ≤ 10 DP, esotropia ≤ 5 DP;
- Hipercorreção: Esotropia > 5DP;
- Hipocorreção: Exotropia > 10DP.
- Estabilidade do alinhamento: Foi mensurado o grau do estrabismo para longe e para perto durante o período de seguimento para observar se houve estabilidade;
- Visão estereoscópica (3D) tanto para longe quanto para perto:
- Visão estereoscópica central: ≤ 60”;
- Visão estereoscópica macular: > 60“e < 200”
- Visão estereoscópica periférica: ≥ 200″ e ≤ 800”;
- Sem visão estereoscópica: > 800”
- Análise da posição ocular percebida: Um círculo de 0,8°×0,8° e uma cruz de 0,66°×0,66° foram dispostos na tela 3D da plataforma e o paciente utilizava óculos polarizados onde cada olho enxergava uma dessas imagens (um círculo e uma cruz). Com um mouse, o paciente devia movimentar a cruz e colocá-la no centro do círculo e, com isso o sistema registrava os desvios horizontais e verticais da posição ocular percebida do paciente via conversão de pixels (0,1°=5 pixels). O intervalo normal foi um valor de pixel de posição ocular perceptual horizontal ≤ 20 e vertical ≤ 10.
- Qualidade de vida: avaliada via questionário (Child-IXTQ): Pontuação varia de 0 a 100, na qual a pontuação mais alta indica melhor qualidade de vida.
Métodos estatísticos
Fora utilizado o software SPSS 25.0 e os dados métricos com distribuição normal foram descritos como média ±desvio padrão. Para desenho de medidas repetidas, foi aplicado o ANOVA. Nível de significância adotado foi α = 0,05.
RESULTADOS
Os resultados evidenciaram uma superioridade consistente do método assistido por IA em todas as métricas avaliadas:
- Taxa de Sucesso Cirúrgico: O grupo B (IA) apresentou uma taxa de sucesso significativamente maior em todos os períodos de acompanhamento (1 dia, 1,3 e 6 meses) em relação ao grupo A (tradicional) (8,47 ± 1,92%; p<0,05);
- Correção do estrabismo: Em todos os períodos de acompanhamento (1 dia, 1,3 e 6 meses), os ângulos de estrabismo residual foram menores no grupo B em relação ao grupo A (p<0,05);
- Visão Estereoscópica: Em relação à visão pré-operatória, a visão estereoscópica central nos grupos A e B aumentou e a ausência de visão estereoscópica diminuiu significativamente (p<0,05). A taxa de aumento e melhora na função estereoscópica foi significativamente maior no grupo B em relação ao grupo A (p<0,05).
- Posição ocular perceptual: A posição ocular perceptual tanto na horizontal quanto na vertical do grupo B estava mais próxima dos valores normais em relação ao grupo A;
- Horizontal: Após 6 meses de treinamento, os valores de pixel no grupo A diminuíram para 39,47 ± 7,09 e no grupo B diminuíram para 28,83 ± 7,48 o que evidenciou que a posição perceptual horizontal do grupo B estava mais próxima da faixa normal.
- Vertical: Após 6 meses de treinamento, os valores de pixel no grupo A foram de 65,32 ± 9,01 e no grupo B de 25,34 ± 4,79, o que evidenciou uma maior proximidade da faixa de normalidade no grupo B.
- Estabilidade do alinhamento: O grupo B apresentou um desvio exotrópico significativamente menor que o grupo A durante todo o acompanhamento (p<0,05);
- Qualidade de vida (escore Child-IXTQ): Em todos os períodos de acompanhamento, o grupo B apresentou maiores escores de qualidade de vida em relação ao grupo A (p<0,05), atingindo seu valor máximo em 6 meses (84,57 ± 5,32).
DISCUSSÃO
Atualmente, o principal método para o tratamento da exotropia intermitente é a correção cirúrgica. Contudo, o planejamento tradicional da cirurgia envolve análises do reflexo corneano (para curtas e longas distâncias), exame com prisma e campo de visão realizados pelo médico clínico para determinar a quantidade de ajuste necessária durante a cirurgia.
Esse processo tradicional está sujeito a interferência humana no planejamento cirúrgico e resulta em diferenças significativas nos resultados de pós-operatório a longo prazo e pode gerar complicações como: supercorreção, subcorreção, regressão, esotropia, ambliopia e perda da visão estereoscópica.
O sistema baseado em Inteligência Artificial, ao realizar uma avaliação dinâmica e abrangente, em detrimento das medidas estáticas e da interpretação subjetiva do método tradicional, oferece uma análise integrada das nove posições do olhar e da função estereoscópica do paciente no cálculo cirúrgico, o que permite um planejamento que visa a correção motora (alinhamento dos olhos) e a recuperação sensorial (visão binocular).
A superioridade do método assistido por IA em relação ao método tradicional no que tange o alinhamento do olhar e a maior capacidade de fusão de imagens pelo cérebro se traduz diretamente na melhor qualidade de vida, visto que a criança apresenta menor fadiga visual e maior bem-estar psicossocial.
LIMITAÇÕES
Apesar dos resultados promissores, a tecnologia ainda é recente e necessita de maior validação científica com maior volume de dados clínicos para que possa, futuramente, tornar-se um padrão de tratamento.
MENSAGEM PRÁTICA
Esse trabalho apresenta evidências robustas e convincentes de uma mudança de paradigma no planejamento cirúrgico do estrabismo. O planejamento cirúrgico tradicional (prismas) avalia exclusivamente a correção do “ângulo motor”, ao passo que o sistema de IA incorpora a qualidade da função binocular no planejamento cirúrgico para melhor reabilitação neuro-sensorial.
Com isso, ao englobar a capacidade de fusão e o potencial estereoscópico no cálculo cirúrgico, a IA consegue analisar o “ponto ideal” de alinhamento que maximiza a chance de o cérebro obter visão binocular, o que resulta em um alinhamento mais preciso, medidas mais estáveis no pós-operatório e uma recuperação funcional superior.
Para o oftalmologista, essa é uma poderosa ferramenta que pode aumentar a previsibilidade dos resultados cirúrgicos reduzindo a necessidade de reoperações e com melhores desfechos na qualidade de vida dos pacientes.
Autoria

Pedro Hélio Estevam Ribeiro Júnior
Graduação - Medicina: Universidade Federal de Uberlândia • Residência - Oftalmologia: Universidade Federal de Uberlândia • Título de Especialista em Oftalmologia pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO/AMB) • Fellowship - Glaucoma Clínico e Cirúrgico - Glaucoma Instituto • Mestrado - Universidade Federal de Uberlândia • Preceptor de Oftalmologia no Hospital Universitário Sagrada Família / IMEPAC (Araguari) • Chefe do setor de Glaucoma do Hospital Universitário Sagrada Família / IMEPAC (Araguari).
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