Umas das sessões plenárias mais importantes e simbólicas da 27ª conferência europeia da WONCA aconteceu durante o segundo dia de evento. Conduzida pelo professor Sir Michael Marmot, da University College London, a sessão sobre ‘desigualdades em saúde’ abordou o impacto que justiça social têm sobre a saúde dos indivíduos.
No mesmo evento em que a WONCA redefine e amplia os pilares fundamentais da medicina de família e comunidade incorporando equidade como um desses pilares fundamentais, o professor brinca com as palavras dizendo que seu tema deveria ser tratado como ‘equidade em saúde’. Isso porque em seus trabalhos Marmot ilustra como justiça social é um indicador de saúde importante.
Em uma revisão de dados britânicos, as análises demonstram que a desigualdade social modifica a expectativa de vida em mais de 20 anos entre os estratos mais ricos e os estratos mais pobres da sociedade. O fato mais alarmante e intrigante é que estamos falando de um recorte social cuja desigualdade social embora em exista, está longe de se equivaler à realidade brasileira, cujas diferenças são ainda maiores. Isso nos permite questionar em relação ao Brasil se nossa desigualdade torna esse intervalo ainda maior.
A pandemia
Em todo mundo, a pandemia do novo coronavírus expos e ampliou esse impacto de desigualdade. Quando se analisa as curvas de mortalidade associadas à covid-19 percebemos claramente um impacto diretamente proporcional da mortalidade associada ao nível de renda. Pessoas mais pobres morrem mais em decorrência da covid-19 no Reino Unido.
O curioso é que quando se compara as curvas de mortalidade por covid-19 com a incidência de doenças crônicas não transmissíveis como DPOC, obesidade, hipertensão e as respectivas mortalidades por essas causas, temos exatamente o mesmo desenho e comportamento do observado com a covid-19. Os determinantes sociais de saúde são implacáveis.
Marmot pergunta e automaticamente responde: “Isso é um problema de saúde ou de assistência social? É um problema de saúde e de assistência social.” Essa é a razão de saúde ter um aspecto intersetorial na construção de nosso Sistema Único de Saúde, o SUS.
Quando adentramos algumas questões sobre a mortalidade em decorrência das doenças crônicas não transmissíveis temos uma forte associação entre o estilo de vida das pessoas e a sobrevida. Tabagismo, obesidade, alimentação e volume de atividade física são aspectos fundamentais para se modificar a história natural dessas doenças e reduzir sua morbimortalidade. Mas por que razão os indivíduos não mudam de hábito? Uma resposta quase automática de muitos de nós em nossos serviços de saúde envolvem hipóteses e percepções que responsabilizam os indivíduos de forma pessoal: falta de engajamento com o plano terapêutico ou não cumprimento e adesão das prescrições, por exemplo.
Princípios de Marmot
Para responder se essa é uma responsabilidade individual ou um determinante social, o professor britânico faz uma análise da distribuição de renda e aplicação dos recursos financeiros de cada família no Reino Unido. Seus resultados mostram que as pessoas com menor renda no país empregam 75% de sua renda em gastos com alimentação. Como esperar que se invista em outros setores da vida irão compor o estilo de vida que é protetor em relação as doenças crônicas não transmissíveis? Nas próprias palavras perspicazes de Marmot: “Não culpe os pobres, culpe a pobreza”.
Quais os caminhos podem modificar essa realidade? “Colocar a equidade no coração de cada ação governamental”, essas são palavras do professor para traçar a rota que é alvo de interesse de todos nós profissionais de saúde, especialmente médicos de família e comunidade, como agentes de transformação. A rota é conhecida como os Princípios de Marmot, para uma sociedade justa e vidas saudáveis (com grifos do autor):
- Dar a toda criança o melhor começo de vida
- Habilitar todas as crianças, jovens e adultos a maximizarem suas capacidades e a terem controle sobre suas vidas
- Criar trabalhos justos e boas condições de trabalho para todos
- Garantir um padrão saudável de condições de vida para todos
- Criar e desenvolver lugares e comunidades saudáveis e sustentáveis
- Fortalecer o papel e impacto da prevenção de doenças
- Combater discriminação, racismo e seus desfechos
- Buscar sustentabilidade ambiental e equidade em saúde juntos
Embora não possamos fazer tudo, todos nós podemos fazer alguma coisa. Atuando em nossos times, serviços, comunidades podemos fortalecer e direcionar esses caminhos para uma transformação social através da saúde (ou vice-versa). Se você e um amigo possuem uma maçã cada, se encontram e compartilham suas maçãs um com o outro, ambos voltam com uma maçã para casa. Se você e um amigo possuem uma ideia cada, se encontram e compartilham suas ideias um com o outro, ambos voltam com duas ideias para casa. Compartilhar essas informações, dados e ideias é o poder do trabalho coletivo para a transformação, compromisso que temos aqui no portal todos uns com os outros.
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