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Medicina de Família24 julho 2025

Transferência de renda reduz mortes e internações?

Estudo mostra que o Bolsa Família evitou 713 mil mortes e 8,2 mi de internações no Brasil entre 2000 e 2019. Projeções seguem até 2030.
Por Renato Bergallo

Em 2024, o Brasil celebrou os 20 anos do Programa Bolsa Família (PBF), uma das maiores e mais antigas iniciativas de transferência condicionada de renda do mundo. Criado com o objetivo de romper o ciclo intergeracional da pobreza, o PBF se consolidou como um instrumento capaz de promover proteção social. Condicionando o repasse de recursos financeiros ao cumprimento de alguns requisitos ligados à saúde e à educação, o programa promoveu melhorias socioeconômicas e acabou gerando também alguns avanços expressivos em indicadores de saúde pública. Alguns estudos, recentemente, avaliaram seus efeitos sobre desfechos específicos e, até o momento, não havia uma análise mais ampla sobre o impacto do PBF em mortalidade e hospitalizações, em escala nacional. Nesse sentido, um estudo publicado na The Lancet Public Health, em julho de 2025, buscou estimar os efeitos do programa sobre esses desfechos ao longo dessas duas décadas e também projetar possíveis cenários até 2030. 

A pesquisa combinou dados longitudinais retrospectivos de 2000 a 2019, atuando com modelos de microssimulação para gerar as estimativas dos efeitos futuros do programa. A análise foi conduzida com dados de 3.671 municípios brasileiros que apresentavam qualidade adequada de registros, o que representou cerca de 87% da população do país. As variáveis definidas como “exposição” ao PBF foram três: cobertura (proporção de famílias elegíveis atendidas), adequação (valor médio do benefício por família) e a interação entre ambas.  

Os resultados demonstraram, de forma expressiva, que o PBF teve impacto relevante na redução de mortalidade e hospitalizações. Municípios com cobertura consolidada (100%) apresentaram uma redução de 17,6% na mortalidade padronizada por idade (RR 0,824; IC 95% 0,807- 0,842), enquanto a adequação dos valores por família foi associada a uma redução de 15,1% (RR 0,849; IC 95% 0,833 – 0,866). Quando considerados conjuntamente, cobertura e adequação elevadas resultaram em reduções ainda mais expressivas: 27,7% nas hospitalizações (RR 0,775; IC 95% 0,756 – 0,795) e 27,7% na mortalidade (RR 0,723; IC 95% 0,711 – 0,735). O estudo estima, através desses métodos que, entre 2000 e 2019, o programa conseguiu evitar aproximadamente 8,2 milhões de hospitalizações e 713 mil mortes no país. 

Para as análises estratificadas por faixas etárias, em crianças menores de cinco anos, a mortalidade foi reduzida em 33% nos municípios com alta cobertura e adequação (RR 0,67; IC 95% 0,65–0,69). Já entre pessoas com 70 anos ou mais, as internações hospitalares foram reduzidas em 48% (RR 0,52; IC 95% 0,50–0,53). Tais achados reforçam a hipótese de que o programa gera benefícios diretos e indiretos na saúde, não apenas por facilitar o acesso a serviços, devido aos requisitos condicionantes, mas também por tratar de determinantes sociais como segurança alimentar, moradia e saneamento básico. 

No cenário prospectivo, ou seja, de estimativas com relação a resultados até 2030, o estudo projetou três trajetórias possíveis até o referido ano: expansão da cobertura; manutenção do status atual; e retração, sob políticas de austeridade fiscal. Na hipótese de expansão (para 100% das famílias com renda inferior à metade do salário mínimo), estima-se que mais 683 mil mortes e 8 milhões de hospitalizações poderiam ser evitadas entre 2025 e 2030. Em contraste, o cenário de austeridade projeta aumento das taxas de mortalidade, revertendo parte dos avanços obtidos nas duas décadas anteriores. 

Tais resultados estão alinhados com evidências internacionais sobre os efeitos das transferências condicionadas de renda na saúde. Avaliações do programa mexicano “Oportunidades” estimaram reduções de 11% na mortalidade materna (RR 0,890; IC 95% 0,820 – 0,950) e de 4% na mortalidade geral. Na Índia, programas similares resultaram em maior frequência de partos em unidades de saúde e menores taxas de mortalidade infantil. No Brasil, estudos prévios já haviam documentado reduções na mortalidade infantil, por HIV/AIDS, tuberculose e doenças nutricionais associadas ao PBF, especialmente entre populações vulneráveis. 

Do ponto de vista prático, os resultados sustentam a tese de que políticas públicas de transferência condicionada de renda devem ser concebidas como investimentos em saúde pública. Ao condicionar o benefício a ações de saúde, como vacinação, pré-natal e acompanhamento nutricional, o PBF articula ações intersetoriais que fortalecem a Atenção Primária e a prevenção de doenças. A ampliação da renda também contribui para maior segurança alimentar, acesso a medicamentos, aquisição de produtos de higiene e melhores condições de habitação, com impactos diretos nos determinantes sociais da saúde. 

Em suma, os achados reforçam o papel estratégico do Programa Bolsa Família como política pública de impacto na saúde. Mais do que uma ferramenta de combate à pobreza, o programa se apresenta como uma ferramenta determinante na estrutura da produção de saúde. Em tempos de crises – econômicas, humanitárias e ambientais – o fortalecimento de programas de proteção social, com foco na equidade e nos determinantes sociais da saúde, se mostra como uma importante prioridade na agenda de políticas públicas. O estudo sugere investir na expansão do PBF, o que se configura como um investimento consequente em vidas salvas, internações evitadas e maior bem-estar da população. 

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