Iniciamos nossa série de textos semana passada com a introdução ao Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP) e com as razões pelas quais uma abordagem centrada na pessoa durante a consulta médica é importante, principalmente nos dias de hoje. Vimos que o MCCP é composto por quatro componentes e hoje veremos o primeiro deles: Explorando a saúde, a doença e a experiência da doença.
Definições
É interessante notar que quando pensamos em “saúde”, em geral incluímos no conceito ideias a respeito de segurança, de paz, de felicidade. Para termos saúde, não basta não termos doenças no organismo: é preciso bem-estar. No entanto, ao pensarmos em “doença”, é mais comum nos restringirmos a entidades patológicas orgânicas. Uma pessoa gripada está doente; uma pessoa desempregada, divorciada ou afetada pela violência em sua comunidade, não necessariamente. Esse descompasso, além de fazer pacientes frequentemente “disfarçarem” problemas psicossociais como doenças físicas – muitas vezes de modo inconsciente – ao buscar um médico, também traz à tona a importância de definirmos “experiência da doença”.
Uma tradicional forma de extrair o significado desse novo conceito é através das expressões em inglês “illness” e “disease“, ambas podendo significar “doença” em português, mas sendo traduzidas mais precisamente como “adoecimento” e “doença”, respectivamente. “Uma determinada doença (disease) é o que todos com essa patologia têm em comum, mas a experiência sobre a doença (illness) de cada pessoa é única.”. Cada patologia irá significar e impactar de modo diferente cada pessoa, a depender de seus contextos de vida. O entendimento disso permite ao médico reconhecer melhor o sofrimento de seu paciente; e ser mais efetivo em tratá-lo. Uma artrose de joelhos será uma doença mais leve para um paciente que não necessita se esforçar muito durante o dia e bem mais complicada para outro que é o responsável pelo cuidado e locomoção de um pai acamado.
Nesse sentido, vale lembrar o comum engano de muitos médicos em considerar o diagnóstico como necessariamente o principal objetivo de uma consulta. Este, frequentemente, diferencia-se da razão de buscar o médico. O diagnóstico, muitas vezes, já é até conhecido, enquanto a razão pode ser o real alvo da intervenção terapêutica. É essencial chegar ao diagnóstico, mas os reais motivos da busca pela consulta também devem ser explicitados e valorizados, tendo sido eles trazidos espontaneamente pelo paciente ou não.
Homens podem procurar a consulta querendo um “check-up”, mas com uma queixa oculta de disfunção erétil; diabéticos com mau controle glicêmico podem ter, na verdade, dificuldades técnicas na aplicação da insulina. O médico deve estar atento a dicas na linguagem verbal e não verbal e dar espaço para que o paciente se sinta seguro para se abrir. Iniciar as consultas com perguntas abertas (“Como posso lhe ajudar?”, “O que trouxe o senhor aqui hoje?”) e utilizar os dois minutos iniciais para que o paciente fale livremente, sem interrupções, também ajudam para esse propósito.
Experiência do paciente
Podemos dizer que, para explorar a experiência do paciente com a doença, é muito importante “saber perguntar”. Além de manter uma escuta ativa e legitimamente interessada, a forma de construir uma pergunta também pode fazer a diferença na investigação do problema. Assim, para entender o adoecimento do paciente, é preciso inquirir, de forma aberta, sobre:
- Suas preocupações e medos (“O que está preocupando você?”): Entender que o paciente está com medo de que sua dor de cabeça seja um AVC pode nos ajudar a direcionar a consulta a orientações e tranquilização, evitando prescrição excessiva de medicamentos; A preocupação de um paciente com relação a ter que acordar cedo diariamente para ir trabalhar pode nos fazer optar por trocar um medicamento de primeira escolha para evitar seus efeitos colaterais de sono.
- Suas ideias a respeito do que está errado (“O que você pensa sobre isso?”): Saber que a paciente relaciona seu cansaço e tristeza à menopausa irá nos ajudar com informações a respeito do diagnóstico diferencial; poderá também, por outro lado, nos sinalizar que ela pode ter dificuldades de relacionar a recente saída dos filhos de casa a esses sintomas, levantando a possibilidade de explorar melhor essa questão.
- Os impactos do problema no funcionamento de sua vida (“O quanto isso que você está sentindo afeta sua vida?”): Um “cansaço” pode ser uma sensação leve e passageira ou pode afetar as tarefas de casa e o cuidado com os filhos. Um pé torcido pode afastar um motorista de aplicativo do trabalho por dias e deixá-lo sem renda. Uma queixa de plenitude pós-prandial e refluxo pode significar a incapacidade de um paciente de frequentar rituais sociais e familiares importantes na sua vida. Diferentes impactos devem influenciar na decisão clínica por diferentes intensidades de intervenção.
- Suas expectativas com relação ao médico (“Como você acredita que eu posso ajudar?”): É comum pacientes terem a expectativa de solucionarem seus problemas através de exames complementares ou de medicamentos. O médico deve entender os motivos pelo qual se espera isso, indicando ou orientando conforme cada situação e com a sensibilidade de envolver o paciente na decisão. Isso possibilita a adesão do paciente e a construção de uma relação de confiança com o médico.
Considerações
Explorar a saúde, a doença e a experiência da doença é só o primeiro componente do MCCP, mas não é um “primeiro passo”. Ele deve estar presente durante toda a consulta, assim como os outros três, que veremos em textos nas próximas semanas. Como vimos, o entendimento dessa experiência individual de cada paciente com sua doença não contribui apenas para que o médico seja mais empático com ele. Ele é essencial para se alcançar bons resultados em saúde, uma vez que fornece informações determinantes para ambos a investigação diagnóstica e a conduta terapêutica. O MCCP contribui para o sucesso do médico em sua atuação e continuaremos a falar sobre ele em textos nas próximas semanas. Até lá!
Referências bibliográficas:
- Stewart M, Brown JB, Weston WW, McWhinney IR, McWilliam CL, Freeman TR. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. 3. ed. Porto Alegre: Artmed; 2017; https://www.slowmedicine.com.br/wp-content/uploads/2018/09/STEWART-et-al-2017_Medicina-Centrada-na-Pessoa_-Tr-Moira-Stewart.pdf
- Duncan, B.B. Schmidt, M.I. Giuliani, E.R.J. Medicina Ambulatorial: Condutas de Atenção Primária Baseadas em Evidências. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2013; https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/registro/referencia/0000001319
- Freeman TR. Manual de medicina de família e comunidade de McWhinney. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2018;
- Gusso G, Lopes JMC. Tratado de Medicina de Família e Comunidade – 2a edição. Cap. 15: Consulta e abordagem centrada na pessoa. Editora Artmed, 2019
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