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Medicina de Família9 junho 2025

CBMFC 2025: Paradigma Sistêmico na MFC - a clínica com novos óculos

Oficina no CBMFC 2025 propõe ferramentas psicoafetivas e paradigma sistêmico para uma clínica mais humana, resolutiva e centrada na pessoa.
Por Renato Bergallo

Boa parte da medicina contemporânea ainda se apoia apenas em lentes cartesianas para compreender e tratar doenças.  

Contudo, a abordagem puramente biomédica se mostra cada vez mais insuficiente para cuidar de pessoas, cujas doenças se relacionam intrinsecamente com uma complexa rede de fatores causais, inclusive – e talvez principalmente – de origem psicossocial.  

A Medicina de Família e Comunidade (MFC) reafirma sua vocação para olhar além da fisiopatologia. E foi exatamente esse convite que norteou a oficina “Ferramentas psicoafetivas para ampliar a capacidade resolutiva da MFC”, apresentada no penúltimo dia do CBMFC 2025. 

Com proposta prática, mas embasada em sólida reflexão teórica, a atividade trouxe à tona o que os facilitadores chamaram de “óculos da complexidade” – uma mudança de paradigma que reposiciona o centro da clínica não na doença, mas na pessoa adoecida e em seus contextos. 

Clinica Medica

O paradigma sistêmico como base epistemológica 

A oficina parte da distinção entre dois modos fundamentais de compreender os fenômenos de saúde e adoecimento: o paradigma biomédico, de base anátomo-clínica e fragmentada, e o paradigma sistêmico, ancorado numa visão de complexidade e interconectada da vida humana. 

Segundo McWhinney, um dos principais pensadores da MFC, a especialidade se define não apenas por um campo técnico, mas por princípios fundantes: foco na relação, compreensão da pessoa em sua totalidade, recusa à separação entre mente e corpo e valorização de metáforas mais próximas da biologia dos sistemas do que da mecânica dos órgãos. Nesse sentido, o paradigma sistêmico não é apenas uma alternativa epistemológica, mas o alicerce de um cuidado coerente com os princípios da MFC. De mesmo modo, é um caminho para uma prática objetivamente mais resolutiva na saúde. 

Da lógica mecanicista à lógica da vida 

Ao refletir sobre a lógica cartesiana – que entende a doença como uma falha localizada no corpo e que acaba reduzindo o paciente a um mero “informante” de sinais e sintomas – a oficina propôs o retorno à integralidade como eixo clínico. 

Esse deslocamento implica uma mudança radical: sair de uma clínica centrada em exames, protocolos e medicamentos, para uma clínica interessada nos modos de viver, sofrer, ser resiliente e se transformar das pessoas adoecidas. Como afirmaram os facilitadores, “não é apenas a doença que deve ser explorada, mas também o processo complexo de adoecimento e seus modelos explicativos”, que envolvem fatores emocionais, da história de vida de cada um, de suas famílias e de como lidam e já lidaram com adversidades em outros momentos. 

Adoecimento crônico: um desafio da clínica na APS 

Com base em casos clínicos e referências da literatura, a oficina exemplificou, por exemplo, as conhecidas diferenças entre o manejo de condições agudas e crônicas. Nos quadros crônicos, mais frequentes na Atenção Primária, a compreensão do contexto emocional e relacional da pessoa ganha ainda mais centralidade. 

Foi nessa perspectiva que se discutiu o papel das emoções e do estresse crônico na gênese e manutenção de diversos adoecimentos. A oficina trouxe evidências da literatura internacional, como o capítulo de Rakel e Shapiro (2002), que aponta que cerca de 60% das consultas médicas estão relacionadas a eventos estressantes da vida. O estresse crônico, segundo Hans Selye, compromete a homeostase e desencadeia respostas adaptativas disfuncionais, exigindo uma abordagem que vá além da prescrição e inclua ressignificação, escuta e vínculo. 

Psiconeuroimunoendocrinologia: o corpo comprova o que a clínica já sabe 

Um dos pilares do paradigma sistêmico é o entendimento da psiconeuroimunoendocrinologia (PNIE), que sustenta, em bases fisiológicas, a proposta do paradigma da integralidade. A oficina resgatou a clássica experiência de Robert Ader e Nicholas Cohen, na década de 1970, que demonstrou que sinais emitidos pelo sistema nervoso podem modular a resposta imunológica.  

Esse campo, ainda pouco difundido na formação médica tradicional, confirma o que a prática da MFC já intui: emoções, vínculos, significados e ambiente modulam adoecimentos tanto quanto vírus, bactérias e genes. A lágrima foi trazida como um exemplo simples – mas concreto – da expressão física, pelo corpo, de emoções da “mente”. 

Um novo repertório para a clínica cotidiana 

Para além da teoria, a proposta da oficina foi essencialmente prática: preparar médicas e médicos de família para atuarem com ferramentas compatíveis com essa lógica ampliada. Os facilitadores apontaram que é necessário sair de uma lógica restrita ao combate à doença para uma lógica de reconstrução dos processos de vida, onde o profissional de saúde é também um facilitador de transformação subjetiva e relacional. 

A clínica baseada no paradigma sistêmico exige novas lentes e novas ferramentas. Por isso, a próxima etapa da oficina seria dedicada a apresentar, na prática, dispositivos como o “Iceberg”, a “Linha da Vida” e o Círculo Familiar de Thrower – todos voltados à escuta da pessoa e de seu sofrimento, ao mesmo tempo em que o traduz de maneira visual, possibilitando seu reconhecimento e, consequentemente, sua abordagem do ponto de vista terapêutico. 

Entre escuta e ciência, uma medicina mais humana 

Ao final da oficina, tornou-se evidente que o paradigma sistêmico não é um luxo conceitual, mas uma urgência prática. Em tempos de alta medicalização, burnout dos profissionais e insatisfação crescente das pessoas com os serviços de saúde, repensar a clínica se torna não só possível, mas necessário. Isso, somado à crescente influência de fatores “extra-biológicos” nos processos de adoecimento dos pacientes, na vida moderna, expõe a pertinência de enxergar a clínica com esses novos óculos. 

Com rigor conceitual, profundidade científica e compromisso com a realidade concreta da Atenção Primária, a oficina mostrou que há, sim, caminhos possíveis para fortalecer o cuidado centrado na pessoa — e que esses caminhos passam, necessariamente, por uma clínica que reconheça e acolha a complexidade da vida. 

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