Como interpretar corretamente o hemograma? Os contadores automatizados disponíveis, hoje em dia, utilizam-se de métodos como espectofotometria, impedância de abertura, fluorescência, reações citoquímicas, dentre outros, para análise das células no sangue periférico.
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Quando se observa uma transgressão do padrão normal, geralmente os dispositivos possuem um método de alerta (“flags”) para levantar a suspeita de que o material deve ser avaliado por um profissional habilitado em hematoscopia.
Entendemos, então, que o aparelho automatizado pode apresentar resultados discrepantes ou até mesmo “se confundir” na discriminação das células. Dessa forma, a checagem também é operador dependente, o que pode gerar viéses na análise. Valores de referência são adotados a partir dos resultados de 95% da população saudável, com dois desvios padrão para cima ou para baixo dos limites superiores e inferiores da normalidade.
Portanto, valores fora dessa faixa podem ser normais no paciente avaliado, como é o caso da Leucopenia Familiar ou da Leucopenia Constitucional. É importante, ainda, destacarmos que a interpretação do hemograma deve estar fortemente vinculada à entrevista clínica e exame físico para melhor elucidação da suspeita clínica.
Como interpretar um hemograma: série vermelha
Maturação mieloide e linfoide
Para melhor entendimento das alterações do hemograma, sugerimos a consulta às figuras abaixo em caso de dúvidas. O conhecimento do processo de maturação das células da medula óssea traz maior clareza para os processos fisiopatológicos que acometem as diferentes linhagens.
Maturação da série vermelha


Série vermelha
- Pode se encontrar falsamente elevada em casos de hiperleucocitose, plaquetas gigantes.
- Falsamente reduzidas: Aglutininas ligadas às hemácias, presença de crioglobulinas ou hemólise in vitro (erro de coleta ou pré-analítico).
Hematócrito – (Htc)
- O hematócrito em geral deve estar próximo a um valor correspondente a 3x o nível de hemoglobina.
- Valores muito superiores ao mencionado acima podem indicar um grau de hemoconcentração e desidratação.
- O contrário também é verdadeiro, e observamos hematócritos com valores muito reduzidos em casos de hemodiluição.
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Hemoglobina – (Hb)
- Estima a concentração sérica de hemoglobina a partir da análise dos glóbulos vermelhos.
- Falsamente aumentadas: leucocitose, hiperbilirrubinemia, paraproteinemia, carboxihemoglobina, hiperlipidemia.
- A elevação da hemoglobina, dentro do contexto clínico adequado, deve levantar algumas hipóteses. Dentre elas, destacamos: Policitemia Vera (poliglobulia primária – etiologia mieloproliferativa) e nas poliglobulias secundárias (ex: tumores produtores de eritropoetina, quadros de hipoxemia crônica, etc). Tais assuntos serão melhor abordados em capítulos específicos.
Volume Corpuscular Médio – (VCM)
- Avalia o tamanho das hemácias.
- Elevado: Alcoolismo, Hepatopatias, Anemias hiperproliferativas (ex. hemolíticas intravasculares ou extravasculares) devido ao aumento na taxa de reticulócitos em sangue periférico (esse costumam ser maiores que as hemácias e confundidos pelo contador automatizado como sendo a segunda). Aglutinação de hemácias, hiperglicemia, Esferocitose, Anemia Perniciosa e megaloblástica também são diagnósticos diferenciais. Uso de medicamentos (ex: Hidroxiureia e Carbamazepina).
Hemoglobina Corpuscular Média – (HCM) ou Concentração de Hemoglobina Corpuscular Média – (CHCM)
- Avalia a “coloração” das hemácias, ou seja, a concentração da hemoglobina no interior das células.
- Elevados: aumento do turbilhonamento plasmático, esferocitose hereditária, presença de hemoaglutinação
Reduzidos: Anemia Ferropriva, Talassemias, Anemia Falciforme - O tamanho das hemácias pode ser normal e estar associado a diminuições da hemoglobina, como nos casos das anemias hemolíticas de instalação subaguda/aguda e nas anemias de doença crônica.
Red Blood Cells (RBC) distribution width – (RDW)
- Este parâmetro avalia a diferença de tamanho entre as hemácias. Quanto maior o RDW, maior a diferença entre essas células. É importante notar que condições com reticulocitose ou aumento de células vermelhas nucleadas no sangue periférico cursam com RDW alto. Quanto mais aguda for a alteração, maior será o RDW.
- Também chamado de Índice de Anisocitose, que significa tamanho diferente das hemácias.
- Aumentam: classicamente Anemias Carenciais, como ferropriva e megaloblástica/macrocítica. Casos pós-transfusionais, principalmente se o paciente apresentar essas condições subjacentes, também podem alterar esse parâmetro.
- Normal: Talassemias, Anemia de Doença Crônica (o grau inflamatório persistente faz com que a medula produza hemácias de tamanho mais uniforme).
- Atenção: Condições com hemólise e reticulocitose, hiper/hipotireoidismo, doença hepática, podem cursar com alteração do RDW a depender geralmente do tempo de instalação.
Esquizócitos
- São fragmentos de hemácias contidos na amostra analisada. Podem ser observados em casos de anemia intravascular. São importantes para o diagnóstico de anemias microangiopáticas / microangiopatias trombóticas, como é o caso da Síndrome Hemolítico Urêmica típica e atípica (SHU/SHUa) e da Púrpura Trombocitopênica Trombótica (PTT). Outra causa comum é a presença de valvas cardíacas mecânicas e anemias trombóticas associadas à neoplasia / pós-transplante / associada a Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD).
- Em contagem > 1% na lâmina avaliada, deve levantar a possibilidade de Anemias Microangiopáticas. Em contagens inferiores a esse valor, a história clínica pode sugerir os demais diagnósticos diferenciais mencionados acima.
Células Vermelhas Nucleadas (Eritroblastos policromáticos, ortocromáticos, pró-eritroblastos, eritroblastos basofílicos)
- No período neonatal são comuns sem apontar para qualquer patologia;
- Em geral aparecem em ocasiões de estresse medular: anemias hemolíticas, neoplasias mieloproliferativas, neoplasia sólida metastática para medula óssea e hipóxia.
- Reação leucoeritroblástica: observado, por exemplo, na mielofibrose.
Acantócitos
- Células vermelhas irregulares e espiculadas;
- Associadas com: Doenças Hepáticas, Abetalipoproteinemia, pacientes pós-esplenectomia.
Pontilhado basofílico
- Inclusões basofílicas pontuais;
- Associados a Talassemias, Toxicidade Exógena
Corpúsculos de Heinz (“Bite cells” / células mordidas)
- Células defeituosas associadas principalmente a deficiência de G6PD, hemólise induzida por droga, pós-esplenectomia.
Corpúsculos de Howell-Jolly
- São inclusões nas hemácias que correspondem a RNA residual;
- Estão associados principalmente a pacientes pós-esplenectomia, anemia hemolítica aguda, anemia megaloblástica
Corpúsculos de Pappenheimer
- Siderossomos contendo grande quantidade de íons férricos;
- Associados a Anemia Sideroblástica (Anemia Refratária com Sideroblastos em Anel ou Síndrome Mielodisplásica com sideroblastos em anel) e sobrecarga de ferro (sobrecarga transfusional, hematopoiese medular ineficaz).
- Sideroblastos em anel são células vermelhas nucleadas anormais, com grande acúmulo de ferro ao redor do núcleo. Coloração de Perls ou Azul da Prússia é utilizada para identificar tais achados.
Esferócitos
- Esferocitose herediária, anemias hemolíticas autoimunes.
Estomatócitos
- Defeitos de membrana;
- Associados a estomatocitose hereditária ou são achados artefatuais.
Hemácias em Alvo (codócitos)
- Doenças hepáticas, pós-esplenectomia, Hemoglobinopatia C (HbC), Talassemias
Hemácias em Lágrima (dacriócitos)
- Mielofibrose, mielofitíase (infiltração medular por tumor sólido).
*No próximo artigo, vamos falar sobre a Série Branca.
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