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Ginecologia e Obstetrícia23 setembro 2025

Contraceptivos orais e risco de câncer de fígado

Estudo de coorte e metanálise mostram que uso de COC não aumenta risco de câncer hepático, trazendo segurança à prescrição.

O fígado apresenta dois cânceres com histórias naturais e fatores de risco muito distintos: o carcinoma hepatocelular (CHC) e o colangiocarcinoma intra-hepático (CCI). Há décadas temos a dúvida se os contraceptivos orais combinados (COCs) aumentam o risco desses tumores. Em 1999, a IARC chegou a classificar como “evidência suficiente” a associação entre COCs e câncer de fígado, conclusão essa apoiada em estudos caso-controle com coortes pequenas, realizados em contextos epidemiológicos muito diferentes dos atuais.  

Isso gerou um desconforto na prática clínica diária: o que orientar a uma mulher com múltiplos fatores de risco para danos hepáticos (obesidade, diabetes, hepatites), mas que precisa de contracepção eficaz? O artigo de Watling e colaboradores atualiza o tema de maneira original: utiliza duas grandes coortes britânicas contemporâneas (Million Women Study e UK Biobank) e uma revisão sistemática com metanálise de todo o conjunto de dados observacionais já publicados. O objetivo é esclarecer se alguém que já usou COC alguma vez realmente tem o risco elevado de câncer hepático, e se isso varia por histologia, idade ou diabetes. 

câncer de fígado

Desenho metodológico 

O trabalho tem dois braços: 

– Braço populacional (coortes do Reino Unido): os autores analisaram prospectivamente a relação entre uso de COC (alguma vez vs nunca) e a incidência de câncer hepático em duas bases robustas: Million Women Study (MWS) e UK Biobank. Foram incluídas apenas mulheres sem câncer prévio (exceto pele não-melanoma) e com informação sobre uso de COC; os desfechos foram identificados utilizando-se os registros nacionais de câncer do NHS (Inglaterra e Escócia), garantindo boa captação e qualidade dos dados obtidos. As razões de risco foram estimadas por modelos de Cox multivariados. Os autores também pré-especificaram análises por histologia (CHC e CCI), por idade (≤55 e >55 anos) e por presença de diabetes. 

– Braço de revisão sistemática e metanálise: em paralelo, os autores buscaram, desde a origem das bases de dados utilizadas até 28 de junho de 2024, estudos caso-controle e de coorte que relacionassem COC e câncer hepático, seguindo protocolo registrado no PROSPERO e PRISMA. A seleção foi independente, com resolução de conflitos por terceiro revisor. Estimativas (OR, HR ou RR) foram combinadas em modelo de efeitos fixos; análises por desenho (caso-controle vs coorte), por subtipo (CHC, CCI) e por duração do uso foram planejadas. Para a análise de duração, calcularam efeito incremental por cinco anos com “generalized least squares”. Heterogeneidade foi avaliada por I²; viés de publicação por funil e teste de Egger 

População envolvida 

– Coortes britânicas: Após exclusões, entraram na análise 1.305.024 mulheres do MWS e 253.408 do UK Biobank, que são amostras de tamanho raramente visto em oncologia populacional. A exposição “usou alguma vez” de COC englobou diversas variáveis, como idade, IMC, álcool, tabagismo, terapia hormonal na menopausa, todos ajustados nos modelos. O método de captação do desfecho via registros nacionais reforça validade externa e reduz perdas de seguimento 

– Revisão e metanálise: O corpo de evidências histórico inclui estudos caso-controle e coortes desde a década de 1970. Isso significa, na prática, misturar populações com prevalências muito diferentes de hepatites B e C, álcool, obesidade e tabagismo, todos determinantes maiores do risco de dano hepático. Portanto, era crucial separar por desenho e por subtipo de tumor. Os autores listam estudos clássicos com estimativas por vezes extremas (ORs elevados em caso-controles antigos), ao lado de coortes recentes com estimativas próximas de 1, o que justifica a análise estratificada. 

Resultados  

– Coortes contemporâneas do Reino Unido: não se observou associação significativa entre “usou alguma vez” e risco aumentado de câncer de fígado. Essa ausência de efeito se manteve quando os autores olharam separadamente para CHC e CCI e quando testaram se idade (≤55 vs >55 anos) ou diabetes modificavam a relação. Traduzindo isso para a prática clínica: nas coortes britânicas, a ex-usuária de COC não teve risco maior de câncer hepático do que quem nunca usou. 

– Metanálise de todos os observacionais: Ao reunir todo o panorama global, o risco relativo combinado para “já usou” versus “nunca usou” ficou muito próximo da nulidade (em torno de 1,05–1,06), com heterogeneidade moderada a alta entre os estudos, mostrando que o passado metodológico (principalmente caso-controles) ainda puxa a média para cima. Quando se restringe a coortes, as estimativas se aproximam ainda mais de 1; quando se separam subtipos (CHC, CCI), também não aparece um padrão consistente de aumento de risco. A mensagem aqui é de consistência: à medida que a evidência ficou mais sólida e prospectiva, o risco foi se diluindo. 

Considerações clínicas e implicações para a prática 

1) A orientação pode ser objetiva: para mulheres em geral, inclusive acima dos 55 anos e com ou sem diabetes, o uso prévio de COC não mostrou associação significativa com maior risco de câncer de fígado nas coortes britânicas contemporâneas. Isso vale tanto para CHC quanto para CCI. Na orientação no consultório, em vez de “há suspeita de aumento de risco”, podemos dizer “nas melhores coortes disponíveis hoje, não se observou aumento”. 

2) Contexto importa: os estudos antigos, em ambientes com prevalências diferentes de HBV/HCV e com formulações hormonais mais potentes, sugeriam risco maior, e, de fato, puxam um pequeno excesso na metanálise global. Porém, quando olhamos para coortes recentes e para análises por subtipo, o risco converge para 1. Isso significa que não devemos “importar” sem filtro resultados de caso-controles do passado para a orientação atual. 

3) Lembre dos grandes vilões do fígado: sobrepeso/obesidade, diabetes, álcool e hepatites continuam dominando o risco. Para a mulher que precisa de contracepção eficaz, vale muito mais a pena mapear e tratar HBV/HCV, discutir uso de álcool, otimizar peso e monitorar fígado gorduroso do que abandonar COC por receio de um risco que, nos dados atuais, não se sustenta. Lembrando que os próprios autores contextualizam o cenário britânico de baixa prevalência de hepatites, o que ajuda a interpretar os achados. 

4) Em quais situações cabe cautela extra? Nas mulheres com doença hepática avançada (cirrose) ou com múltiplos fatores concorrentes, a conversa deve ser individualizada não por causa de um “gatilho” claro do COC para câncer, mas pelo conjunto de riscos hepáticos e pelos efeitos metabólicos. Aqui, estratégias sem estrogênio (ex. DIU de levonorgestrel) podem ser preferíveis. 

5) Para pesquisadores e gestores: este trabalho mostra o valor de ligar grandes coortes a registros nacionais de câncer (NHS) e de combinar evidências em revisões com protocolo, PRISMA e PROSPERO. É a prova de como responder a dilemas clínicos recorrentes com dados contemporâneos bem cuidados. 

A melhor evidência atual indica que o uso de contraceptivo oral não aumenta de forma significativa o risco de câncer de fígado nas populações ocidentais avaliadas, e que diferenças por subtipo tumoral, idade ou diabetes não modificam esse quadro. Isso permite centrar a consulta no que realmente traz risco hepático e dá tranquilidade para uma prescrição contraceptiva baseada em eficácia, preferências e segurança global, e não em receios herdados de uma literatura antiga e heterogênea. 

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Referências bibliográficas

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