As infecções tem alto impacto clínico e econômico na cirrose hepática. O NEJM publicou uma revisão em junho de 2021 abordando esse tema.
Patogenia
O paciente portador de cirrose apresenta maior susceptibilidade à infecção devido a fatores diretos e adicionais.
Existem alterações nos mecanismos internos de proteção à infecção, favorecendo a translocação bacteriana. São exemplos:
- Disfunção da imunidade inata e adaptativa;
- Redução do fluxo biliar;
- Quebra da barreira intestinal;
- Alteração da microbiota intestinal, com aumento de microrganismos patogênicos como enterobactérias e enterococos.
Além disso, fatores externos contribuem no desenvolvimento das infecções nos cirróticos, tais como:
- Uso de Inibidor de bomba de próton (IBP);
- Ingestão de álcool;
- Sarcopenia e síndrome da fragilidade;
- Múltiplas internações hospitalares;
- Vários cursos de antibioticoterapia;
- Procedimentos invasivos.
Devemos ter atenção, pois esses fatores adicionais aumentam o número de infecções fúngicas nesses pacientes. É necessário combatê-los, visto que são fatores modificáveis.
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Relevância e manejo infecções por cirrose
As infecções tem grande impacto na história natural da cirrose hepática, estando associadas a:
- Hospitalizações prolongadas: duas vezes mais longas do que nos pacientes infectados sem cirrose hepática;
- Piora da função hepática e descompensações da cirrose hepática;
- Lesão renal aguda;
- Insuficiência hepática aguda sobre crônica (ACLF);
- Aumento de mortalidade hospitalar: até 50% nos cirróticos com sepse hospitalizados.
Diante disso, o reconhecimento e tratamento das infecções deve ser precoce. Para tal, é importante que saibamos responder algumas perguntas:
Quais os sítios mais prevalentes de infecção na cirrose hepática?
- Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE);
- Infecção do trato urinário (ITU);
- Pneumonia;
- Infecções de pele e partes moles;
- Infecção pelo Clostridioides difficile ( > 3 evacuações amolecidas/dia).
Quais as fontes da infecção no paciente com cirrose?
- Adquirida na comunidade 🡪 48% dos casos
- Relacionada a cuidados de saúde (nas primeiras 48h da admissão em pacientes com contato com o sistema de saúde) 🡪 26% dos casos;
- Nosocomial (> 48 h da admissão) 🡪 26% dos casos
Quando devo realizar rastreio infeccioso no paciente com cirrose?
- Presença de lesão renal aguda (LRA);
- Encefalopatia hepática (EH);
- Piora da ascite;
- Hemorragia digestiva alta;
- Disfunção de outros órgãos;
- ACLF
Quais exames devem ser solicitados no rastreio infeccioso?
- Citologia e cultura do líquido ascítico;
- EAS e Urocultura;
- Radiografia de tórax;
- Hemoculturas;
- Toxinas A e B C. difficile em caso de 3 ou mais evacuações diarreicas.
Quais os sinais que indicam solicitar vaga na UTI?
- PAM < 65 mmHg e lactato >2mmol/L apesar da ressuscitação volêmica adequada;
- SpO2 < 90%;
- FC < 40 ou > 130 bpm;
- FR < 10 ou < 28 irpm;
- Declínio persistente do nível de consciência.
Como guiar a antibioticoterapia empírica?
- Local do tratamento (domicílio x enfermaria x terapia intensiva);
- Gravidade da apresentação (Descompensação hepática/ ACLF);
- Fonte da infecção (comunitária x cuidados de saúde x nosocomial);
- Padrão local de resistência antimicrobiana.
Quais as particularidades da PBE?
- Diagnóstico: citologia do líquido ascítico ≥ 250 polimorfonucleares por campo;
- Bacterascite: cultura de líquido ascítico positiva, sem critério para PBE;
- Para aumentar o rendimento diagnóstico, inocular culturas em frascos de hemocultura (aeróbio e anaeróbio) à beira do leito, com agulha estéril;
- Albumina 1,5 g/kg/D1 e 1g/kg/D3 como prevenção de LRA e morte;
É importante ressaltar que devido a disfunção imunológica, esses pacientes raramente apresentam resposta febril. Além disso, marcadores inflamatórios como PCR e procalcitonina podem estar elevados nesses pacientes, independente de infecção.
Todavia, níveis persistentemente elevados de PCR identificam pacientes com alto risco de mortalidade a curto prazo.
Em resumo, o manejo de infecção nos pacientes com cirrose requer identificação precoce do microorganismo causador, prevenção de lesão orgânica; cuidados para evitar infecções nosocomiais e determinação prognóstica.
Manejo intensivo do paciente cirrótico
Os parâmetros de sepse e choque séptico não foram validados na população com cirrose hepática, contudo, podemos fazer algumas observações:
- A pressão arterial média alvo recomendada é 60 mmHg;
- Variações respiratórias da cava inferior (VCI) pode ser usada para avaliar resposta a fluido, todavia ascite tensa pode dificultar a medida da colapsibilidade da VCI;
- A pressão venosa central pode ser imprecisa devido ao aumento da pressão intra-abdominal devido a ascite;
- Apesar da depuração prejudicada do lactato no cirrótico, níveis elevados do mesmo em paciente instável está associado ao choque séptico.
- Expansão volêmica pode ser feita com cristalóides ou colóides -> metanálise recente sugere melhor sobrevida em 90 dias com expansão com albumina;
- Albumina 5%: volume plasmático expande na mesma proporção do volume infundido;
- Albumina 25%: volume plasmático expande 3-5 vezes o volume infundido, porém de forma mais lenta.
- Síndrome hepatorrenal tipo 1: associar terlipressina + albumina;
- Noradrenalina é o vasopressor de escolha quando PA permanece menor que 60 mmHg, apesar de ressuscitação volêmica e antibioticoterapia de amplo espectro;
- Glicocorticoides devem ser usados no choque refratário, visto que a insuficiência adrenal é comum nesses pacientes. Todavia, aumenta risco de hemorragia digestiva.
Devemos considerar cuidados paliativos de fim devida nos pacientes não elegíveis a transplante hepático: sarcopenia; fragilidade; aumento da necessidade de vasopressor e suporte ventilatório.
Prevenção de infecção
- Profilaxia antibiótica deve ser feita em 3 grupos de risco:
- Sangramento gastrointestinal agudo 🡪 Profilaxia primária por 7 dias;
- Cirrose avançada com alto risco de infecção: Ptn total do líquido ascítico ≥1,5g/dl com cirrose avançada (Child≥B9 e BT≥3) ou disfunção renal( Cr≥1,2mg/dl ou sódio≤130 mmol/L ou BUN≥25mg/dl) 🡪 Profilaxia primária até resolução de ascite ou transplante hepático;
- História prévia de PBE 🡪 Profilaxia secundária até o transplante hepático ou óbito.
Apesar de recomendada, deve-se atentar que a profilaxia antibiótica aumenta o risco de resistência bacteriana.
- Vacinação:
- Influenza; Pneumocócica; Varicela e herpes Zoster; hepatites A e B; tétano, difteria e coqueluche acelular; sarampo, caxumba e rubéola);
- Apesar dos ensaios clínicos da vacina contra Covid-19 não ter incluído pacientes cirróticos, essa é recomendada nesse grupo, dado a alta mortalidade nesses pacientes.
Quanto mais compensada a doença hepática, melhor será a resposta imune à vacinação.
Mensagens finais
- A cirrose tem fatores intrínsecos que predispõem à infecção;
- Os fatores extrínsecos adicionais devem ser evitados e manejados;
- A infecção é marcador de mau prognóstico nesses pacientes, logo, devemos ter alto grau de suspeição e realizar rastreio infeccioso e tratamentos precocemente;
- Estabelecer prognóstico é de suma importância. É preciso avaliar pacientes com resposta inadequada como candidatos a transplante hepático ou candidatos a cuidados paliativos;
- Medidas preventivas como profilaxia antibiótica e vacinação devem ser lembradas;
- São necessárias estratégias eficazes no combate à resistência antimicrobiana.
Referências bibliográficas:
- The Evolving Challenge of Infections in Cirrhosis. Jasmohan S. Bajaj, M.D., Patrick S. Kamath, M.D., and K. Rajender Reddy, M.D. June 17, 2021. N Engl J Med 2021; 384:2317-2330. doi: 10.1056/NEJMra2021808
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