A violência de gênero – aquela que compreende qualquer tipo de agressão física, psicológica, sexual ou simbólica contra alguém em situação de vulnerabilidade devido à sua identidade de gênero ou orientação sexual – não está ocultada na área da saúde como um todo.
Num plano macroscópico, em que se percebe a estrutura, dados da OMS apontam que 35% das mulheres sofrem violência ao longo da vida. Ainda com base no mesmo relatório, cerca de um terço desses casos ocorre com o ato violento sendo cometido pelo parceiro.
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Pesquisa
Um fato recorrentemente marcado na literatura e íntimo de quem atua diretamente com pessoas vítimas de violência de gênero é que ela quase nunca começa com grandes atos violentos. Ela nasce em pequenas objetificações e depreciações que partem da ideia para a palavra e, depois, para atos que variam desde a alienação patrimonial até a agressão física, sexual e homicídio.
A pesquisa publicada por Farias e colaborares neste ano de 2022 em que o grupo de pesquisa avaliou expressões da violência de gênero vivenciadas por terapeutas ocupacionais de todas as regiões do Brasil utilizando métodos mistos. Foram entrevistadas 67 terapeutas ocupacionais autodeclaradas mulheres cisgênero.
Quando questionadas se já haviam sofrido alguma violência por serem mulheres, 91% das participantes responderam afirmativamente. Apenas 13 delas fizeram denúncias em órgãos competentes, 18 relataram não denunciarem por medo de constrangimento e apenas 30 dividiram essa experiência com alguém.
Durante as análises de discurso dessa pesquisa, 15 narrativas continham relatos de violência de gênero relacionada ao trabalho, como no exemplo ilustrativo a seguir:
“Fui mandada embora porque ia casar e isso significaria mudança no comportamento em relação ao trabalho. Também já tive uma chefe que discriminava por ser jovem e mulher, infantilizando, não validando técnicas e saberes que propus” (Farias et al, 2022)
Há um paradoxo contido nas narrativas dessas profissionais de saúde que nos provoca reflexões. Muitas das entrevistadas não haviam percebido que algumas das situações vivenciadas em seu cotidiano configuravam violência de gênero, como ilustrado nesta narrativa a seguir:
“[…] então é muito difícil inclusive identificar que tal comportamento é uma violência. No momento em que eu me deparei com algumas perguntas aqui, neste questionário, comecei a refletir algumas situações que vivi hoje […]” (Farias et al, 2022)
Essas narrativas foram obtidas a partir de entrevistas com mulheres com no mínimo 12 anos de escolaridade, atuantes na área da saúde e em áreas afins ao suporte a pessoas em vulnerabilidade ou ainda em serviços específicos para pessoas vítimas de violência de gênero.
Ainda assim, houve dificuldade na percepção de vivência de alguns atos violentos. De modo mais grave, algumas das experiências de atos violentos ocorreram no contexto da formação acadêmica ou da atuação profissional na área da saúde por outros profissionais de saúde. Esse é um demonstrativo do quanto essa é uma característica estrutural em nossa sociedade.
Caminhos de mudança
Sem pretensão alguma de solucionar qualquer problema identificado, mas com um potencial de despertar reflexão, a leitura destes estudos e do cenário faz despertar caminhos possíveis para a mudança.
No cenário do cuidado é necessário que cada ator conheça suas potências e fragilidades, seus direitos e deveres. O tema da violência na área da saúde é tão somente uma reprodução de um problema estrutural contemporâneo num setor social específico em que os mesmos grupos vulnerabilizados são objetos de atos violentos pelos mesmos grupos com validação social para dominar dentro e fora desse setor. A grande diferença é que neste recorte social, o setor saúde, identificar problemas e propor soluções, ou minimamente buscá-las, é parte essencial do fazer profissional.
Desde a graduação entender a Política Nacional de Humanização como constitutiva do SUS e desenvolver competências humanísticas nos profissionais de saúde é o caminho macropolítico para mitigar essa questão.
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