O avanço terapêutico no diabetes na última década, sobretudo no diabetes mellitus tipo 2 (DM2), vem fomentando modificações nos guidelines de acompanhamento e tratamento da condição, com enfoque maior não apenas no controle glicêmico, mas também no tratamento direcionado para as demais comorbidades apresentadas, sobretudo em pacientes de maior risco cardiovascular e renal.
A interação entre insuficiência cardíaca (IC) e diabetes mellitus tipo 2 (DM2) reflete esse novo paradigma na avaliação de indivíduos com DM2. A IC pode ser exacerbada pela inflamação crônica, estresse oxidativo e rigidez ventricular promovidos pelo DM2, enquanto novas terapias como os inibidores de SGLT-2 parecem trazer um impacto positivo no manejo de ambas as condições.
Dado o impacto significativo no risco de hospitalização e mortalidade em pacientes com IC e DM2, é fundamental que o manejo clínico desses pacientes vá além do controle glicêmico tradicional, priorizando intervenções terapêuticas que também privilegiem o tratamento da IC. Com o objetivo de revisitar as principais evidências recentes no que concerne a intersecção entre DM e IC, foi publicada uma revisão narrativa brasileira recentemente a respeito do assunto, que trazemos para discussão neste artigo.
Métodos
O estudo foi uma revisão integrativa, realizada utilizando bancos de dados da LILACS e Pubmed, com intuito de selecionar artigos publicados entre 2018 e 2023 que avaliassem a abordagem do controle glicêmico em pacientes com insuficiência cardíaca e DM2. Após a avaliação inicial e aplicação dos critérios, foram selecionados cinco artigos para embasamento da discussão a respeito do tema. De forma didática, trouxemos os diferentes aspectos abordados entre IC e DM2 em alguns tópicos.
Resultados
A revisão inicia pontuando dados interessantes a respeito do que é intitulado como cardiomiopatia diabética. De fato, existem motivos para entender a associação entre as condições. Cerca de 10% a 15% dos indivíduos com DM tem IC e cerca de 40% dos indivíduos com IC tem DM. O motivo parece estar relacionado à resistência insulínica e às suas consequências ao metabolismo do miócito.
A resistência insulínica cardíaca pode ser explicada pela menor expressão de GLUT-1 e GLUT-4 na musculatura estriada cardíaca, o que favorece o uso de ácidos graxos livres (AGLs) como fonte de energia. Isso leva a diversas implicações, como menor eficiência energética a longo prazo, além da geração de radicais livres e oxidantes, inflamação, ativação de sistema renina-angiotensina-aldosterona e promoção de hipertrofia e fibrose cardíaca. Logo, além das múltiplas condições em comum entre DM e IC, aparentemente a própria hiperglicemia e resistência insulínica tem seu papel na piora da função cardíaca.
Desfechos
Relação entre HbA1c e Riscos Cardiovasculares
Os autores da revisão pontuaram evidências, como as advindas de uma subanálise de dados de 14.656 participantes do estudo TECOS (Trial Evaluating Cardiovascular Outcomes With Sitagliptin), que sugerem que o controle glicêmico possui uma relação de curva “em U” com os desfechos em IC. Metas muito restritivas parecem piorar o risco de eventos adversos, ainda que tolerar hemoglobinas glicadas mais elevadas, sobretudo acima de 8%, estão associados à progressão da cardiomiopatia diabética, disfunção microvascular e hospitalizações por IC. A sugestão é de que o nível ideal de HbA1c situa-se em torno de 7%, mas o manejo deve considerar fatores individuais, como fragilidade, idade e comorbidades, priorizando um equilíbrio entre eficácia e segurança. Não há estudos especificamente desenhados para avaliação de qual a melhor meta de HbA1c nessa população até o momento.
Variabilidade Glicêmica
Já a variabilidade glicêmica é um marcador independente de risco cardiovascular, uma vez que pode intensificar o estresse oxidativo e a disfunção endotelial. Estratégias para minimizar essas flutuações incluem o uso de medicamentos de ação prolongada, monitoramento contínuo da glicose (CGM) e ajustes frequentes na terapia.
Inibidores de SGLT2
Os inibidores de SGLT-2 são o grande destaque quando falamos sobre IC e DM2. Além do impacto em controle glicêmico, é sabido que a classe também apresenta benefícios cardiorrenais, visto em estudos como o DAPA-HF e EMPA-REG. Os mecanismos de ação pelos quais tal classe está associada a melhores desfechos cardíacos incluem a excreção renal de sódio, promovendo redução da pré-carga; melhora na pós-carga, melhora na função mitocondrial e redução de inflamação sistêmica.
Agonistas de GLP-1
Os agonistas de GLP-1, ainda que não abordados em detalhes nesta revisão, também podem ter um papel no manejo da IC, sobretudo na IC com fração de ejeção preservada, visto as evidências da semaglutida no estudo STEP-HFpEF. Tais benefícios podem estar ligados a efeitos indiretos, como redução da inflamação e melhora da perda de peso.
Inibidores de DPP-4
Os inibidores de DPP-4 devem ser considerados com cautela, de acordo com os autores da revisão, em pacientes com IC. A saxagliptina foi associada a um aumento de 27% no risco de hospitalização por IC (estudo SAVOR-TIMI 53), enquanto outros agentes apresentaram efeitos neutros. A saxagliptina não deve ser utilizada em pacientes com IC.
Insulina e Sulfonilureias
Apesar de não serem exatamente contraindicadas em indivíduos com IC, ambas terapias estão associadas a maior risco de hipoglicemia e ganho de peso. Não devem configurar a primeira escolha de tratamento, mas podem ser opções caso o controle glicêmico esteja aquém do esperado.
Conclusão e mensagem prática
Os inibidores de SGLT-2 foram um divisor de águas ao trazer as lentes para a análise dessas condições. O reconhecimento da intersecção entre DM e IC foi um passo fundamental para assistirmos pacientes com as condições, além de permitir a elaboração de estudos específicos sobre intervenções nessa população. No futuro, é esperado que novas evidências esclareçam qual o melhor alvo glicêmico para indivíduos com DM, bem como quais terapias add-on aos inibidores de SGLT-2 podem conferir ainda melhores benefícios.
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